A MOSCA

“ Uma mosca circulava inconvenientemente

sobre sua cabeça.”

Jô Soares, O Xângo de Baker Satreet

Era tarde da noite; eu lá sentado

Na mesa do escritório – escrevendo,

Olhei pra fora e estava, então, chovendo,

Eu, também, lia; – calmo e relaxado

Choveu bastante; forte, e, de repente

A chuva foi cessando calmamente

Ficando um silêncio absurdo.

E eu tentava ouvir... Tão muda e calma

Estava à noite, até gelou minha alma

Cheguei até pensar: “eu estou surdo?”

E comecei bater na mesa então.

Para ouvir – ao menos, algum som

“Não; não estou” eu disse, assim, “que bom”

Fiquei observando a cerração

Voltei-me ao papel do esboceto –

Apenas uma idéia pr’um soneto –,

Romântico demais... – sentimental

Par’um amor vivido ardentemente

Que foi-se embora triste, de repente...

Dizendo-me que foi fenomenal...

A noite era apenas de saudade

E de preocupação com o indivíduo –

Que para muitos é como resíduo –

Que vive aí: jogado na cidade

Assim pensando pela noite fria

O que senti foi só melancolia

E compaixão – vontade de ajudar

A toda gente, enfim, desesperada

Que busca auxílio até de madrugada

E, à vezes se afoga, então, num mar

Num mar de solidão e de tristeza

Num mar de águas negras – de egoísmo

A cada dia morre o romantismo

Levando, do caráter, a nobreza

E comecei chorar – mesmo não crendo

Que as lágrimas estavam escorrendo

Pelo meu rosto – pela minha face

E eu falei assim: “Meu Deus!... que triste

Um ser humano bom, não mais existe?

Pois hoje em dia quase ninguém dá-se...”

Fiquei, então, em meu questionamento

Fiquei ali só de lamentações

Dos desenganos, das desilusões

Que eu passei também por um momento

Mas mesmo assim é bom tentar de novo

Tentar auxiliar todo esse povo –

Às vezes até gente da elite

E comecei ouvir, em meu ouvido,

Uma perturbação como um zumbido

“Vai ver”, falei “que é labirintite.”

E ignorar, então, eu procurei

Àquela sensação lá da cabeça –

Estranha sensação – devassa avessa –,

Até que quando, então, pra trás olhei

E quase que caí de meu assento

Ao ver tão grande monumento

Voando sob a luz tão baça, fosca

“Não pode ser!”, pensei ao ver o inseto –

Ali sobrevoando – que abjeto

E triste de se ver tão grande mosca!...

A mosca era brilhante – esverdeada,

Talvez uns dois centímetros que tinha

Nas asas grandes vi linha por linha

Da tão fina nervura acobreada...

A mosca ali parou me observando

E levantava vôo, vez em quando

E eu peguei, então, o meu chinelo

Tentei matá-la, sem muito sucesso

“Espero qu’eu não leve um tropeço

Eu disse ao subir num escabelo.

Mas ela, então, voou – ficou no teto

E como eu estava irritado

Eu comecei xingá-la; e ao meu lado

Eu vi uma vassoura; fui direto

Pegá-la pra matar aquela mosca

Tão gótica, bizarra, torva, tosca...

E de repente, como a jumenta

De um profeta – nome Balaão –,

Ela falou: “Por que o palavrão?!

Se não fiz nada?! Vê-se te orienta!...

Estremeci de novo. Estarei louco?

Ah eu nada falei por uma hora

A frase que ouvi vem da memória

Preciso descansar; dormir um pouco.

Mas eis que ela fala novamente

“O que você ouviu não é da mente;

Ah, quem eu sou você nem imagina...”

Mas eu falei assim: “Sei quem és tu:

Vieste do maldito Belzebu...”

E ela: “Que blasfêmia! Sou divina!...”

“Divina?! Como?! Se pões varejeira?!

Se o que gosta apenas é carniça?”

“Mas esse é o fim da vã cobiça

E d’ambição – não é isso que lidera

Em quase todo coração humano

Não vais me descobrir? Sou um arcano

Que hoje em dia está se rareando...

Mas ta és um dos poucos felizardos

Qu’apesar dos espinhos e dos cardos

Ficas parado ali: me contemplando...

Eu não consigo te deixar em paz...”

“Maldito inseto vê-se vai embora!

Co’ essa preocupação que me devora

Vai pra teu mestre – para Satanás...”

Já que devora tudo qu’é ruim

Oh por favor! Afaste-se de mim!...

Pois isto aqui não é um manicômio

Há aflição demais – muito sufoco

Se alguém me vir irá dizer : “É louco!

Pois fala ele sozinho ou co’ demônio.

“Eu tenho de ti porque és um tolo!...

Por tudo que passaste és complacente

Queres salvar o mundo e toda gente

Na prestatividade e no consolo

Ah muitos o amam sim: o seu serviço

Já percebestes não?! Sabes bem disso

Então me falas qu’eu sou carniceira

Na tua própria espécie é bem pior

De uma olhadinha ao redor

E dize-me: Eu não sou verdadeira?!

Penetro surdamente pelo ouvido

Caminho ao labirinto – qu’é o cérebro –

Muitos me levam, às vezes, para o féretro

Depois que o meu prazo for cumprido...

Eu ponho a varejeira pra chocar –

É quando a mente fica a fervilhar –,

Pois quando ela nasce que tormento

Vai penetrando cérebro adentro

Até chegar a fonte – até o centro

Do coração, também do pensamento...”

Então falei assim: “Que disparate

Eu penso que perdi o meu juízo

Preciso acordar – oh sim preciso –

Quando se quer, nem cachorro late

Tentei, tentei matá-la outra vez

E quando eu acertei – digo a vocês

Não pode ser verdade o que eu ouvia

Falei pra mim é alucinação

Porque não há nenhuma explicação

É paranóia?! Ou esquizofrenia?!...

Eu consegui! Matei-te triste insento!”

Do teto então a mosca foi caindo

Ela falou: “Meu ser aqui é findo

De curiosidade estás repleto

Oh tu me conservaste um bom tempo –

Sozinho, às vezes, tens um forte empo”

E eu senti então um arrepio

Pelo meu corpo, já, sem paciência

Ela falou: “Sou tua Consciência”

Morreu depois. Então fiquei mais frio...

10/04 à 05/06/2002

Gonçalves Reis
Enviado por Gonçalves Reis em 07/08/2007
Reeditado em 31/08/2007
Código do texto: T597413
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