Kumari

Apenas 4 anos era a idade da pequena e mal sabia ela que possivelmente se tornaria a mais nova deusa do Nepal. Seus pais andavam orgulhosos e ao mesmo tempo amedrontados com a possível derrota, se isso viesse a acontecer seria muito doloroso, afinal já haviam planejado um grande futuro para a pobre menina.

Entre todas as meninas, procura-se a pérola que possua todas as 32 qualidades exigidas: pele perfeita, sem nenhuma cicatriz; traços particularmente finos; personalidade angelical...

Encontrada então, o astrólogo real dá a última palavra, o veredicto. Os pais estavam atentos e ansiosos para que a pequena passasse pela última etapa, deram-lhe algumas instruções de como deveria agir.

Ela, porém, não entendia o que se passara não queria ficar ali! Queria apenas continuar em casa, brincando com seu irmãozinho. Sentia saudades dele, havia alguns dias que passava por uma série de testes e isso a deixava exausta. Para a prova final, a menina foi trancada em uma sala do templo em que estava cheia de cabeças de animais ensangüentadas, ela por sua vez não se mostrou assustada, se chorasse seria "desclassificada", afinal uma deusa não poderia chorar.

Gritos para todos os lados, eram os pais eufóricos. Sim, gritavam! Nossa filha é a nova deusa Kumari. Nascia então naquele momento a mais nova deusa da região do Nepal. Todos deveriam venerá-la, o "mundo" estava a seus pés. Agora todos deviam se ajoelhar em sua presença. Até mesmos aqueles que a puseram no mundo, seus pais. Até o rei do Nepal. "As pessoas beijam seus pés. Algumas os lavam e depois bebem a água, pois acreditam que é um bom remédio."

Todos os anos há um festival anual de Indra Jatra: três dias de júbilo em honra da pequena deusa viva, no caso a pequena escolhida.

Finalmente quando a procissão começa a avançar pelas ruas da cidade, a pequena deusa é rodeada na mesma hora por uma maré humana enfurecida. Ela não se mexe, empoleirada em seu trono no topo de uma imensa carruagem antiga, que é puxada por homens que vão abrindo caminho ruas abarrotadas da velha cidade.

A pequena parece uma mulher, sua pela está ostensivamente maquiada, os olhos grandes alongados com pintura negra, a testa colorida de vermelho-carmim é enfeitada com um terceiro olho, "aquele que vê além de tudo e destrói o mal". Bem penteada com uma tiara em ouro coberta de jóias, ela parece tão kitsch quanto os budas pintados nos templos. É uma coisinha fofa que fascina de tão séria, impressionantemente indiferente. Seu olhar vazio, quase inexpressivo, parece encerrar um aborrecimento profundo...

Para a menina tudo aquilo era normal. Aquele amontoado de gente querendo vê-la, as pessoas ao seu redor. Pena que não duraria para sempre, mal ela sabia que quando se tornasse mocinha de verdade, ou seja, menstruasse. Deixaria de será a deusa Kumari.

E foi isso que aconteceu aos 12 anos. Era inconcebível, para ela, saber que não era mais deusa. Tinha acabado: o sangue supostamente a fez perder sua divindade e a transformou em humana de novo.

A mocinha bateu o pé, choramingou. Tentou de tudo: gritos, silêncio. Mas, pela primeira vez, ninguém a escutava, ninguém a obedecia. Ela não era mais a Kumari, não era mais ninguém.