O QUE SOU OU ME DEIXAM SER
Sou o que sou,
o que dizem que sou
ou me deixam ser.
Sou uma mulher. Sou uma qualquer.
Discriminada, se cato na rua
o meu pão de cada dia
com o suor de todo o meu corpo
e com o suor dos homens que me buscam.
Cortejada e procurada,
se me recato engalanada,
desperto a sede e fome dos homens.
Aliás, sou pelos homens
porque para eles nasci
e para eles vivo
ou brinco de viver.
Sobre meu corpo,
na solidão das noites,
muitos deles,
senhores respeitáveis e sérios,
já se fizeram crianças
e, aninhados como no útero materno,
deixaram fluir suas mágoas profundas,
seus medos,
seus traumas e desventuras
com os hálitos impregnados de álcool e nicotina.
Quantos, quase meninos,
sobre o meu corpo,
já se fizeram homens
e em precoces ejaculações
deixaram escapar
a ganância de uma maturidade
que de ante-mão sabia natimorta.
Meu corpo rua-rio-estrada
é espaço tantas vezes percorrido
em todas as direções.
Meus olhos, tantas vezes beijados,
são baços e cansados das noites insones.
Meus ouvidos públicos
andam fartos de sussurros,
de ofensas e promessas vazias...
Meus músculos ora flácidos
tantas vezes estendidos em incontáveis leitos
andam cheios de cansaço.
Minha alma, de tanto pranto,
de tantos dias de matizes diversos,
perdeu o senso da cor
e segue pálida em seu mundo opaco.
Nas noites e dos inúmeros coitos
só gerei, com diversos homens,
o tédio
e só pari, entre sacrifícios inauditos,
o necessário para a sobrevivência,
para a “sobremorrência”,
para as fantasias vistosas do carnaval da vida,
carnaval da dúvida.
Os que me buscam nas noites de orgias,
entre a fumaça dos cigarros e as cervejas
não me reconhecem nas ruas, nos tribunais,
ou nas portas das suas igrejas.
Assim, sou o que sou,
sou o que dizem que sou,
sou o que me fizeram ser,
sou o que e deixaram ser,
sou o que me fizeram crer que era.
Sou um ser vivente.
Sou um ser vivido.
Sou um ser decente.
Sou uma espécie de servente
que se auto-serve em bacânticos banquetes
em busca do pão de cada dia.
Assim eu sou...
(Belém, junho de 1971)