Maria Judia

Maria Judia

da face branca e muito pálida

dos olhos pretos e muito fundos

como as listras pretas e brancas

do uniforme imundo

como num cinema mudo

diferente do resto do mundo

lá fora

como se não fizesse mais

parte de tudo

aquilo atrás das cercas

armadas de fios elétricos

onde tantos morriam

tentando escapar da sorte

- ou da falta dela –

que este lado do muro reservava

dia e noite concentrados

no trabalho forçado

do campo de concentração

Maria Judia não ficaria

grudada na cerca, como tantos,

até o corpo enegrecer

a vida esvair

e o sangue escorrer

pelos cantos

Maria Judia não morreria no chuveiro

aquele banho do qual ninguém voltava

em que a água não era molhada

mas seca, visível, nublada

gás que limpava a sujeira da existência de seu povo

Talvez morresse de fome

agora que já pesava

menos que a blusa e a calça

do uniforme

os ossos expostos

e a pele colada

como se entre eles

não tivesse nada

talvez morresse estuprada

talvez morresse queimada

talvez espancada

ou alvejada

ou sob o pretexto da medicina

com o cérebro separado do corpo

os membros esquartejados

pelo avanço científico!

Mas a morte de Maria Judia

não importa ao regime, à sociedade

nem à história

de nada vale

tua morte, Maria

Soubesses tu, Judia,

que passado tanto tempo

a morte continua banalizada

e, pior, naturalizada

são números e mais nada

ninguém se padece de ti

ninguém se assusta ou comove

citam estatísticas,

entre eles tua morte,

e a de muitos outros

judeus, negros, homossexuais

mulheres e pobres

nada que faça falta jamais

todos e tantos concentrados

nos velhos e novos

campos de concentração sociais