Dia de trabalho
I
Acordo de manhã, bem cedo
já antecipando o meu enredo
tendo que ser escravo da papelada
e eu, que nem um servo sou direito,
eu esperneio e grito e bato no peito
mas a atuação não me serve de nada
Resigno-me a ir logo para a empresa
este monstro que mantém bem presa
a alma ao hábito extremamente ruim
de transformar teu escritório em casa
acolher somente relatórios em sua asa
até a asa me levar ao lugar donde vim
O lado bom de ser sempre sozinho
é poder ir embora deste seu ninho
ir sem nunca decepcionar ninguém
mas não ousem sentir pena de mim
já acostumei-me a ser sempre assim
para o meu próprio mal ou meu bem
Cansado, bebo algumas xícaras de café
mas estar sentado é melhor que em pé,
se tu não tens como consumir cafeína
ser escravo do tempo é estar acordado
eu agora noto os relatórios ao meu lado
chamando meu nome com voz de menina
Ter que analisar sua veracidade, que porre
a empresa é corpo insano que nunca morre
e justamente eu tenho de ir logo trata-lo
já apontei defeitos no sistema as vezes
defeitos cuja correção levaria uns meses
e o Chefe não presta atenção no que falo
Por esses motivos que penso em demissão
mas isto é só uma ideia de um "doido são"
pois como pagarei as contas sem o salário?
Aliais, já pensei algumas vezes no aumento
só que pedir isso ao Chefe é falar ao vento
pois ele é soberbo, mesquinho e salafrário!
Não, perdoe a raiva... é sincera a desculpa
o Chefe provavelmente nunca teve culpa
pois desconfio que há alguém acima dele
pois assim é a escada do Corporativismo
nesta eterna luta de biopsíquico ativismo
onde eu estou abaixo de quase todos eles
II
Enfim, chegou a última hora do serviço
acabou a torpe razão em ser submisso
e posso voltar a ser talvez ser humano
como ter a tola coragem de administrar
cada centímetro deste vastíssimo lugar
se até mesmo na minha Vida me engano?
Finalmente eu posso quase descansar
e, quem sabe, sentir a ventania no ar
que não chega a mexer nem uma folha
ao deitar, o olho nota um cacho de uva
e feliz é a filosofia que há nesta chuva
que somente quer tudo molhar e molha
Sinto uma tremenda pena da Natureza
ser etéreo que comete a penosa proeza
de trabalhar vinte e quatro horas por dia
desculpe-me mas eu já não sou assim
fico a procurar quem trabalhe por mim
a procura de satisfazer esta alma vadia
A cada respirar eu sinto o bruto
passar de cada um dos minutos
que vão teimando em se arrastar
já eu aqui fico a vigiar os dois ponteiros
com olhos ensanguentados o dia inteiro
mas a hora teima em não passar
O Chefe me chama mais uma vez
(minha última ordem do dia, talvez)
eu vou e respondo, prontamente
é que por aqui, a dura norma
é se ocupar de alguma forma
tanto seu corpo quanto sua mente
Enganei-me, que a ordem dada
não me pesou em quase nada
pois fui chamado para ser pago
este é meu pagamento ordinário
que teimo em chamar de salário
e que no bolso apertado eu trago
Com ele é que compro pão
e tudo o que estiver a mão
pensando no tempo futuro
pagar as contas é preciso-
um ato fruto do bom juízo
luz da ideia no vasto escuro
III
Tenho é ciúmes do meu Patrão
seu sim é o Sim, seu não é Não
e ele parece nunca ter dificuldades
todos são, para ele, escravos vivos
são só seres eternamente primitivos
feitos para suprir toda a sua vaidade
O poder que vem do seu terno
parece ser tão vasto e eterno
coisas que é certo nunca serei
ele trata este meu escritório
como se fosse seu território
pois certamente ele é o Rei!
Mas todo Rei é passivo de revolução
ato plebeu que muda todo curso de ação
das nações que pedem sua comida e água
esses subordinados são como países pobres
são como alguns infernos cujo o patrão cobre
de justificada raiva e tão improdutiva mágoa
Se eu trabalho muito, o Chefe trabalha mais
alguns empregados dizem que perdeu a paz
para montar o seu contemporâneo império
realmente há um peso de responsabilidade
eternamente a acelerar esta já velha idade
ao ir pesando o semblante de homem sério
Coitado: ele deve ser tão sozinho quanto eu
ou quem sabe o seu duro coração já cedeu
ao vil encanto de alguma fêmea poderosa
mas há boatos de que ele bebe muito vinho
e sempre no mesmo bar, tristonho e sozinho
e eu quando choro escrevo em verso e prosa
Não sei mais se quero minha promoção
pois já é muito o trabalho que me dão
e quem sabe mais esforço me deprima
o Chefe é sempre tão casmurro e mudo
e dizem que na sua família lhe falta tudo
falta a irmã e o irmão e o primo e a prima
Deve ser por isso que ele é mal humorado
e eu até que aceitaria de muito bom grado
ir a sua mesa e perguntar como tem vivido
enfim, ir demonstrar algum tipo de amizade
pois isso demonstraria alguma possibilidade
de finalmente ver o meu serviço promovido!