Poema com retas e curvas
“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? “ (Fernando Pessoa – Álvaro de Campos)
Penso que o mundo pouco mudou
Em relação à hipocrisia
Ainda se faz de conta
Na mercearia
Na farmácia
Na padaria
Aqui
Ali
Acolá
Muitos ainda se travestem do que não são
Querem o que não está ao alcance
Da mão
E desejam
Desejam
Desejam
em demasia
Com sofreguidão
Quem se diz de mal com a vida
Vez em quando?
Quem se confessa triste
Inconformado
Abandonado por um amor?
Todos querem tirar vantagem
Querem os holofotes
Querem fazer parte
Do grupo que desdenham
Desde que o tapete vermelho
Lhes seja estendido também
Quase nunca encontro alguém
Com a coragem de dizer
Que já levou porrada na vida
De admitir o fracasso
A solidão
O deslize
O preconceito
Preconceituoso,eu?
“Não tenho nada contra...”
Mas....
Não conheço fulano
Mas não fui com sua cara
Político é tudo igual
ninguém presta
Também não podia ser diferente
Olha como ela se veste?
Também estou farta de semideuses
Que se acham o tempo todo
Que são donos da verdade
E não buscam conciliação
Nem consigo
Nem com o próprio irmão
Cada um quer ser melhor
O mais bonito
O mais esperto
O onisciente
Onipresente
O “cara”,enfim.
Ando saudosa
De gente de verdade
Assim:carne e osso
E muito coração
Que não trapaceia
Que estende a mão
Que vê o defeito
E a dor do outro
E pensa assim:
E se fosse comigo?
A empatia sumiu
Deve estar circulando
No espaço
Em busca de outro planeta
Por aqui o que vale
É a vantagem pessoal
Ninguém está nem aí para o seu igual
Tudo que é para quem precisa
É esmola
É incentivo à malandragem
O quinhão
Ainda é para muitos
O do tempo da escravidão
Tem de ser para poucos
Para os bem-nascidos
Para os iluminados
E na educação então?
Antes é que era bom
Só para alguns
Nenhuma complicação
Escola era só para quem podia
quem não tinha eira nem beira
nem chegava ao portão
Hoje com tanta gente nos aeroportos
Com todas as caras e tipos
Indo e vindo
para e de todos os lugares
A coisa perdeu a graça
Paris já não é a mesma
E política é só safadeza
Mas lá atrás
Quando as benesses eram para poucos
O dinheiro também era surrupiado
O banqueiro só se dava bem
(como hoje também)
A corrupção era varrida para debaixo do tapete
Mas...
Estava tudo em ordem
Agora com o povão querendo tudo
Sendo advogado
Doutor
E mesmo com as adversidades
Também professor
O Brasil está esquisito
As domésticas são um luxo
E muitos acham que está tudo errado
Carteira assinada
FGTS
Férias
Que miséria!
Onde vamos parar?
Essa gente não se enxerga
Saudade mesmo da ditadura
Onde tudo ficava às escuras
Mas poucos se davam bem
A água só corria pro mar
E o povão não podia ir além
Do sonho do feijão com arroz
No prato
E o tecido mais barato
Para a roupa de ver Deus
E essa hipocrisia classemediana
Que antes nunca quis saber de política
Entende agora que é bom participar
Pois
“se a gente se aquietar,não espernear,
Não botar a boca no trombone”
O que antes era só nosso
Vem essa gentalha e consome
É um tal de bolsa disso
Daquilo
Do ProUni
E o povão
Que tá ficando metido a besta
já quer até falar inglês
Espanhol
E o português também,
Por que não?
Afinal esse idioma pátrio
Tão bonito
Mas tão ingrato
Sempre discriminou
Apontou o analfabeto
E confinou o pobre à senzala
Que até hoje existe
Na cabeça de alguns
Pois falar bonito no estrangeiro é fácil
Difícil
É fazer todas as concordâncias
Em nosso português
Aqui não basta se comunicar
É preciso complicar
Usar palavras requintadas
Até descontextualizadas
Pois assim ninguém se entende
E os pseudointelectuais
Ficam pra lá de contentes
“o saber tem de ser para poucos”
E voltando ao mote inicial
Sinto falta de gente de verdade
Não esteriotipada
Que exerce sua cidadania
Com orgulho
Que se compraz com a felicidade do outro
Que sofre por amor
Por desengano
Por injustiça
Mas que busca solução
Não anda na contramão
Do que pode dar certo
Que não ignora os erros
Mas não aponta o dedo
Que não faz crítica vazia
E
Que ainda acredita na utopia
Não aquela que congela o coração
Que alimenta o lobo
Voraz do preconceito
Mas a que permite ações concretas
Em linha reta às vezes
Como o poema do Pessoa
Com endereço certo
A quem precisa
Mas com várias curvas
Que nem um abraço
Que coloca
No mesmo laço de amor
Todas as pessoas
De toda cor
Credo
classe
e orientação sexual
Sinto falta de quem acredita
De quem tem fé
De quem não se encasula em si mesmo
E com todo esmero
Entra em sintonia
Como as alegrias e as dores do mundo