A um bispo que me chamou ateu
(um poema clássico de Victor Hugo)
Ateu? Ao vosso asserto eu dou explicação.
Espreitar-me, vigiar minh’alma, remexer,
Virar do avesso o fundo ignoto de meu ser,
Buscar o ponto ao qual minhas dúvidas vão,
Interrogar o inferno, inquirir seu registro
De polícia, através de um dédalo sinistro.
Para ver o que eu nego e o que eu admito e aceito,
Não convém. Minha fé, meu credo, satisfeito,
Vou expor. Amo, estimo a caridade franca:
Se se trata de um Deus de longa barba branca,
De uma espécie de rei, de papa ou imperador,
Num trono que se chama em teatro bastidor,
Tendo sobre a cabeça um vulgar passarinho,
À esquerda um profeta e à direita um anjinho
Com seu filho no colo exangue, desmaiado,
Deus uno e triplo, Deus invejoso e malvado;
Se se trata de um Deus que calca sob os pés
As vítimas das leis terríveis de Moisés,
De um deus que santifica os chacais nas cavernas,
E os filhos faz punir pelas faltas paternas,
Que faz o sol parar no ocaso diariamente,
Em risco de o avariar com seu gesto imprudente,
Deus geógrafo medíocre e astrônomo pior,
Que o homem por ignorância adora com terror,
Deus furioso, a fazer careta à espécie humana,
Empunhando na destra imensa durindana
Deus que perdoa pouco e pune de bom grado,
Que condena a virtude e premia o pecado
Deus que em seu céu azul, por não ter que fazer,
Nossos erros imita e entrega-se ao prazer
De flagelos semear, soltando sobre nós
Cambises e Nenrod, e Átila – o cão feroz –
Mandando assassinar os ímpios e os incréus,
Ó padre, sou ateu: não creio nesse Deus!
Se se trata, porém, do ser imaterial
Que resume com toda a evidência o ideal;
Ser cuja alma em minh’alma intimamente sinto,
Ser que me fala em suave e misterioso enleio,
Que opõe o verdadeiro ao falso, entre os instintos
Cuja vaga letal nos submerge até o meio;
Se se trata do Ser transcendente e sem par
Que uma só religião não consegue explicar,
Que adivinhamos bom e sentimos sapiente,
Sem contorno e sem limite, imenso, transcendente,
Que não tem filhos, mas tem mais paternidade,
E amor que o verão calor e claridade,
Se se trata do vasto etéreo e incognoscível
Que ao Gênese explicar não é jamais possível,
Que vemos todos nós com os olhos da razão,
Impossível de ser comido em algum pão,
Que, por dois corações se amarem não se rala,
E vê a natureza onde vês o pecado;
Se se trata do ser eterno sublimado,
Que pela estranha voz dos elementos fala,
Sem bíblias, sem cardeais, sem materialidade,
Por livro o abismo e por igreja a imensidade,
Vida, Espírito, Lei, tão grande que é invisível,
De tal modo sublime, impalpável, etéreo,
Que enchendo com seu vulto o infinito sidéreo,
Nota-se em tudo, e é não obstante indefinível;
Se se trata do ser imenso que elabora
E distribui o bem, a justiça e a razão,
Por limite o infinito, imutável outrora,
Hoje, agora, amanhã, sempre, dando à Criação
Sua estabilidade e aos corações paciência,
Que, luz fora de nós, é, dentro de nós, consciência;
Se é desse Deus grandioso e belo que se trata,
Que, na aurora ou na treva, augusto se retrata;
Se se trata, por fim, do princípio eternal
Que encerra a vida e o pensamento universal
E que, à falta de um nome a altura, eu chamo Deus,
Tudo se muda então,voltam-se nossas almas,
A tua para a noite, o abismo dos proteus,
Dos vermes, dos anões, dos monstros, dos chacais,
E a minha para o dia, a aurora, o sol, o céu,
A Natureza, a luz, as coisas divinais,
E então eu sou o crente e tu, padre, és o ateu!
(Tradução de Modesto de Abreu)