OUTRA DIVINA COMÉDIA
No meio do caminho, iluminado à luz da lua,
Vaga vil o vulto veloz, vencendo a viática rua,
Se encolhendo ao frio do vento que passa cortante,
Passo a passo ele avança pela estrada, errante.
Para num de repente e, silencioso, espreita,
Se já dorme a pobre casa daquela rua estreita
Pula a cerca que separa aquela humilde propriedade
Das demais propriedades daquela pobre cidade
No peito do invasor, muito ódio e violência,
De outras tantas que teve na vida de experiência
Ofegante e temeroso de quem na casa já dorme
A morena mão mansamente a maçaneta move
Destranca o trinco que travava a antes restrita entrada
E vence, sem nenhum orgulho, esta segunda etapa
Penetra, então, no abrigo da desgraçada família,
Que inocente descansa ao sono da quinta vigília
Dormindo na sala estava um pobre desempregado
Que das bebedeiras trazia a cara e os pés inchados
No peito trazia a sina da falta de fé e de sorte
No bolso nada trazia, o que é pior que a morte.
Na cozinha um cão velho que come somente aranhas
E outros poucos insetos que, moribundo, apanha.
Na parede o retrato de uma avó e de um avô
Que, casados meio século, não conhecem o amor
No quarto estava um moleque dormindo sem esperança
De pão, de amor, de chance de um dia ser criança.
Ao seu lado uma guria de cabelos ouriçados
Que aos doze anos brinca de ter cinco namorados
Súbito, a sua frente, aparece uma senhora,
Cansada de estar cansada de esperar por muitas horas
- forra o chão e te deita sem acordar teu padrasto
Que hoje, além de nervoso, também está embriagado,
Mas vê se levanta cedo, toma um café e sai,
Que, se ele acorda e te vê, não sei não... ai, ai, ai!.
Volvia-lhe no peito um rancor que move céu e estrelas.