Essa noite eu sonhei...

Essa noite eu sonhei...

Essa noite eu sonhei com minha morte triste e sangrenta.

Tão suave, tão sublime, tão linda e violenta.

Ali estava apenas mais um corpo jogado na sarjeta.

Outro indigente para ser jogado numa vala ou gaveta.

Antes do meu último suspiro me lembrei de você.

Tantas lembranças de ti que nem sabia o que dizer.

Então olhei para o céu e roguei para que a sua fosse diferente.

Que não na rua, na madrugada fria e sim numa cama quente.

Lembro contadas as vezes que estendendo a mão lhe pedi moeda.

Sua cara de desprezo me mandando cassar serviço ou a merda.

Quando rasgava o verbo dizendo deixe de ser vagabundo.

Que se eu quisesse havia de sobra trabalho nesse mundo.

Aqui nesse mesmo lugar onde meus olhos baixavam pedindo perdão.

Sem estudo e às vezes a cachaça para esquentar-me o frio que passou vale mais que o pão.

Você sempre disse que havia muito trabalho e nunca me ofereceu uma roça para capinar.

Você sempre teve tanto desdenho que nem me perguntou como cheguei nesse lugar.

Nunca se deu ao trabalho de perder cinco minutos para me escutar.

Não havia em seu rosto nem pena, compaixão ou outra coisa no olhar.

Que diferença faz, já não estarei aqui para lhe incomodar.

Será que sentirá falta do quanto eu lhe incomodava quando aqui passar?

Sempre lhe via na igreja onde quando todos saiam eu ia rezar.

Ali eu pedia para que a muitos como você Ele viesse a tocar.

Só me via sentado porque minhas pernas entrevadas mal me permitem andar.

E que o cheiro de cachaça é que não tenho onde fazer café para me esquentar.

Sempre lhe via na igreja, pois essa praça perto da igreja é o meu lar.

Trabalhei muito e meu filho pôde com a graça Dele estudar.

Após tanto esforço fiquei doente e virei um fardo muito pesado pra

Um filho carregar.

Ele se casou e teve filhos, doente eu era uma despesa muito grande.

Para que ele pudesse arcar.

Mas nada disso agora faz diferença enquanto arruaceiros estão a

me espancar.

Sinto o gosto de sangue e a dor é tão forte que chega a anestesiar.

Já não sinto frio, nem fome, só a saudade de meu filho e netos está

A machucar.

me sinto feliz, amanhã tenho certeza que estarei em um bom lugar.

Essa noite eu sinto minha morte triste e sangrenta.

Tão áspera, tão rude, tão marcante cada pancada algo arrebenta.

Aqui amanhece apenas mais um corpo jogado na sarjeta.

Outro indigente sem documento, sem família e sem jaqueta.

(Ronaldo Jr. – Raulzito)