FILHOS DE TUPÃ
FILHOS DE TUPÃ
CANTO I
Ó virgens guerreiras, gentis Amazonas,
Que as matas, velozes, correis às centenas,
Freai vossos bravos corcéis para ouvir
O canto dorido que o peito extravasa
De um filho das selvas, de heróis gentes bravas
Que outrora, indomados, reinavam aqui!
Cadê as florestas de mil esplendores,
De frescos recantos e amenos odores,
Com seus Curupiras, Sacis e Caiporas,
Com suas cavernas e límpidas fontes,
Moradas de espíritos bons e valentes
Dos velhos caciques guerreiros de outrora?
Que é feito das "tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos, cobertas de flores"
Que um dia o poeta indianista cantou?
Dizei-me, Tupã, onde estão os guerreiros!
Embalde procuro encontrar os terreiros
Das tabas. Não sei que mau fado os levou.
Será que outras terras buscaram afoitos
À caça de glórias na guerra e outros feitos
Que a sanha em seus sangues de bravos reclama?
Dos brancos, quem sabe, os costumes seguiram,
Deixando suas tabas a eles se uniram,
Ombreando com eles nas lides que irmanam?
Que vejo, Tupã, que horrenda miragem!
Meus olhos não mentem; reais vejo imagens
Que o ser me horripilam, congelam-me as veias:
Esquálidas formas de humanas figuras
De todas idades, famintas criaturas,
Que mais se assemelham a errantes caveiras.
Quem são estes pobres em tal desventura?
Que crime hediondo pra sorte tão dura,
Que a morte demora em findar o sofrer?
Que estranha moléstia os detém isolados
Tão longe de ajuda em redis confinados
Somente onde possam quais párias morrer?
Oh, não, é mentira, meus olhos se iludem!
Terrível presságio em minha alma se acende.
Mas vejo sua tez... as feições não desmentem
Que o sangue sagrado em suas veias percorre.
São filhos dos bravos na caça e na guerra,
Que agora má sorte maltrata indolentes.
Dizei, que mal-feito, que horrível quebranto...
Será que de Iara o pérfido canto
Soou pelas tabas das tribos inteiras,
Tornando indefesos os braços valentes,
Que agora, acuados, se atêm impotentes,
Sujeitos às nesgas minguadas de terras?
CANTO II
Por vales e serras, por campos e matas,
Senhores das terras, buscavam suas caças
Timbiras, Tupis e guerreiros louçãos
De mil outras tribos iguais em destreza,
Que iguais eram todos na mãe natureza,
Que o sangue lhes vinha do ubérrimo chão.
Tupã os plantara, divinas sementes,
No solo das matas aqui exuberantes
Do seu Pindorama. Com magna altivez,
Os bravos rebentos, guerreiros valentes,
Nasceram da terra, mãe fértil, ingente,
Nos dias primeiros que a aurora se fez.
Armados de arcos e aljavas às costas,
Passavam correntes, subiam encostas,
Rondando suas presas de guerra ou de caça.
E à noite nas tabas à luz das fogueiras,
Contavam-se os feitos às tribos inteiras,
De glória, bravura e ufania das raças.
Nenhum imprudente sequer forasteiro
Ousava, atrevido, adentrar os terreiros
Sagrados das tabas, canteiros de bravos,
Que não fosse amigo ou que ao menos provasse
Correta intenção, sem temor nem disfarce,
Na ousada aventura que ali o levava.
Seus arcos potentes, com flechas ligeiras,
A caça, o inimigo abatiam certeiras,
Que os olhos ao longe avistavam atentos.
Honravam Tupã e benignos espíritos,
Em vasos de argila enterravam seus mortos,
Temiam Caipora e Anhangá com respeito.
Assim, desde sempre, viviam felizes,
Tingindo seus corpos de vários matizes
Pra sorte na luta e na caça, nas festas,
Sem outra ambição que ser livres, sem jaça,
Temíveis na guerra, invencíveis na caça,
Ter peixes nos rios e os dons da floresta.
CANTO III
Um dia, porém, veio o branco maldito
Em grandes ubás pelo oceano infinito
Com armas de fogo e vistoso enduape.
Fizeram-se amigos com mil bugigangas,
Trazendo aos pajés e caciques miçangas
Em troca de terras do sul até o norte.
E as tribos inteiras, confiantes no amigo
Que o mar lhes trouxera, sem ver o perigo,
Fumaram com ele o cachimbo da paz.
E ajuda lhe davam no erguer suas casas,
Caçar periquitos, tucanos e araras,
Pra, em grandes ubás, carregar pro além-mar.
Sabiam ser nobres a par da braveza;
Honravam seus pactos, fugindo à vileza
Da ignóbil traição por Tupã execrada.
Os novos amigos, julgavam, destarte,
Iguais em bravura e nobreza nos atos.
Sequer nem sonhavam co' a trama forjada.
No entanto, os intrusos, sem pejo nem honra,
Aqui se arvoraram senhores das terras,
Zombando os amigos fiéis que os valiam.
À força das armas e grandes reforços,
Faziam das tabas terríveis destroços
Pra erguer suas vilas, que assim lhes convinha.
Vilmente banidos quais pestes danosas
Do chão que era seu, das florestas divosas,
Perdiam seu brio, sua força e coragem
De à luta lançar-se e vingar a desonra,
Buscando nos arcos e flechas desforra,
Que as armas dos brancos lhes tinham vantagem.
Os bravos guerreiros, valentes de outrora,
Quebravam seus arcos, temendo Caipora,
Que ao branco ajudava no seu malfazer.
Imbeles se tornam, enfim indolentes,
Do ibirapitanga a extinção inclemente
Veem quedos das matas sem nada dizer.
Os pérfidos brancos, aqui, entrementes,
Buscando riquezas com ânsia demente
Das pedras preciosas, de ouro e esmeraldas,
Adentro os sertões, vadeavam correntes
Em grandes bandeiras quais longas serpentes,
Deixando, em seus rastros, aldeias plantadas.
E assim, pouco a pouco, os brancos traidores
Do sul até o norte se tornam senhores,
Semeando nas tabas miséria incontável.
Destruíam florestas, matando suas caças
E após, gananciosos, plantavam suas roças
De cana-de-açúcar em terra infindável.
Na louca procura de lucro e riqueza,
Carentes de braços pras árduas empresas,
O índio resolvem forçar aos engenhos.
Que infâmia sem nome, que horrenda sevícia
Ousar, como escravos, forçar à labuta
Os lídimos donos, herdeiros de antanho!
À caça, porém, só afeitos e à pesca
No pátrio Jardim de Tupã sempre em festa,
Opõem-se a curvar-se ao trabalho mesquinho.
Se, à força das armas, roubar-lhes puderam,
Jamais como escravos servis os teriam,
Que os peitos sangravam e orgulho ainda tinham.
E o branco sem alma os chamou de vadios
Além de selvagens, incultos, gentios,
Pois que antes a pecha de barbros pusera
Aos ritos, às crenças, às danças, às festas
Que, à luz de Jaci, manitôs das florestas,
Há muito, ensinaram nas tabas primeiras.
Roubados nas terras, feridos seus brios,
Curtindo sua dor, se tornaram redios
Nas brenhas distantes, fugindo aos malditos.
Mas oh! Maus espíritos cruéis os seguiam.
Doenças dos brancos pras tabas traziam,
Ceifando mil vidas, cobrindo-os de luto.
Crianças e velhos e os peitos valentes
Se viam morrer pelas febres repentes
Das pestes estranhas que o branco trouxera.
Embalde os pajés redobravam feitiços,
Que o mal não cedia dos corpos mortiços,
Assim dizimando mil tribos inteiras.
Por luas e luas, sofrendo indefesos
Da sorte os maus-tratos, do branco o desprezo,
Extingue-se o orgulho de seus corações.
Dos poucos que restam da dura refrega,
Sem terras de caça, submissos, se entregam
Do gado à cultura que os brancos impõem.
Nem isso, porém, lhes brandou a má sorte,
Que o branco voraz os pagava com trotes.
Levando suas reses, deixavam promessas
De ajudas em roupas, remédio e alimentos.
E o índio leal espertava confiante
Que as belas conversas não fossem trapaças.
E os brancos traidores, em vez das promessas,
Levavam-lhes água-de-fogo, a cachaça
Maldita, que os fortes domina e embriaga.
Incautos, não viam do branco a sevícia:
Torná-los servis, dependentes do vício
E, assim, trabalhar sem querer outra paga.
Já quase se foram, de então, cinco séculos
De lento extermínio das tribos insólito
À luz desse sol e à frieza dos brancos.
As poucas que restam, covardes vegetam
Em parcas reservas nas quais as confinam
E à míngua perecem com seus desencantos.
Contudo os malvados e ignóbeis traidores
Dos índios se dizem gentis defensores,
Criando Serviço a lhes dar Proteção,
O qual subornou-se a impiedosos intentos,
À grandes empresas cedendo, inclemente,
A posse das terras que do índio inda são.
A tantos desmando sucede a FUNAI
De "raras virtudes" e anseios iguais:
Em nome do índio, atender à impostura.
Em todas as tribos idêntica é a sorte:
Direitos humanos do índio é a morte,
Que dita impiedosa dos brancos a usura.
Embalde os caciques de tribos valentes
Opõem-se aos tiranos em prol de suas gentes,
Clamando por força de antigos direitos.
Suas vozes, porém, não encontram acesso
Nas leis econômicas que urdem progresso
E esmagam aqueles que impedem seus atos.
CANTO IV
Em nome das leis e do pátrio interesse,
O branco voraz desbravou o Noroeste
Com largas estradas abrindo os sertões,
Ferindo as reservas que aos índios cedera
Com roncos de serra e tratores de esteira
Terríveis, sem alma, quais feros dragões.
Mesmo antes do envio dos primeiros tratores,
As terras já tinham legais seus senhores,
Exceto os que ali há milênios viviam.
E o povo valente e feliz Nambiquara,
Senhor milenar do torrão que o criara,
De chofre, roubado se vê do que tinha.
Do índio importuno resolvem livrar-se,
Levando-o pra longe, onde não perturbasse
Da Pátria o interesse em manter segurança,
Qual outro não era que ricas engordas
De muitas empresas e alguns da alta roda,
Que à custa do povo lá fazem poupança.
Então a FUNAI, "gentilmente e solícita",
Carrega-os pra longe, pra terras inóspitas,
Distantes do Vale do Rio Guaporé.
Assim desterrados, de fome sucumbem.
Dos tantos que havia, alguns só resistem
E ao vale, famintos, regressam a pé.
Imensas florestas de verde perene
Desfolham com nuvens de incrível veneno,
O Tórdon mortal, de terríveis efeitos,
Usado na guerra vietname do Oriente,
Que os rios contamina e polui as nascentes,
Num crime ecológico, hediondo delito.
Algum foragido da branca impostura,
Juntando aos regressos, revive as agruras
De ver as florestas em toras e cinzas,
As cercas de arame isolando suas choças,
Beirando as reservas, pastagens e roças,
E ver que seu povo se extingue, agoniza.
CANTO V
Ó brancos sem alma, traidores infames,
Tupã não morreu nem perdoou vossos crimes!
A dor de seus filhos vingança reclama!
Do além, os espíritos pedem castigos
Às mãos assassinas dos vis inimigos
Que suas moradas, covardes, profanam!
Dos vossos pecados sentis já os efeitos:
A terra se nega a vos dar os seus frutos,
Que as águas não regam dos rios ressequidos.
As secas assolam as terras sem matas,
E o ar poluído sufoca a garganta
Nas grandes cidades que tendes construído.
E dia virá, para vosso castigo,
Se não corrigirdes o mal cometido,
Que em vão buscareis saciar vossa sede
À sombra frondosa duma árvore e amiga,
Que não a achareis, e as águas poluídas
Trarão vossa morte, se delas beberdes.
O mundo de hoje a injustiça condena,
Proclama bem alto os Direitos Humanos
A todos os homens, iguais, sem ressalvas.
Mas vós, mesmo assim, não ouvis os queixumes
De um povo que morre; não vedes o crime
De vil genocídio dos filhos das selvas!
Se, ao negro liberto, igualdade cedestes,
De escravo o fizestes irmão nos direitos,
Por que não ao índio tratais de igual feito:
Dar foros legais de também serem gentes
Capazes de agir por seus próprios talantes
E não ser tratados como índios-objetos?
Já basta, senhores da branca nobreza,
De usardes o índio com baixa vileza
E assim garantirdes ações inconfessas:
De ajuda ao invés, saciardes cobiças
De alguns afilhados que tendes na lista,
E ao índio sobrarem somente promessas!
Dizeis que sem sangue fizestes a história,
Que nada manchou vossos feitos e glórias
Na Terra da Cruz, que Cabral vos legou.
Porém, dos nativos que foi que fizestes?
Mostrai-me uma taba sequer, se é que existe
Feliz, cuja paz vossa infâmia poupou!
TERMOS TUPIS EMPREGADOS NO POEMA
Tupã .................trovão. Usado pelos missionários jesuítas para
designar Deus.
Curupira ............ser fantástico que tem os calcanhares voltados
para frente.
Saci...................ser fantástico: negrinho de uma perna só, que
fuma cachimbo e usa barrete vermelho.
Caipora ..............ente fantástico que provoca desgraças e azares.
É descrito de forma diferente em cada região.
Iara .................. espécie de sereia dos rios e lagos.
pindorama ..........país da palmeiras. Nome dado às terras do Brasil.
Anhangá .............espírito do mal; diabo.
ubá ....................espécie de canoa feita da casca ou talhada de
um único tronco.
enduape .............tanga de penas; vestuário
bugiganga ...........objeto de pouco valor, quinquilharia.
miçanga ..............contas miúdas de vidro.
ibirapitanga..........pau-brasil
Jaci.....................lua.
manitô (ou manitó).. gênio tutelar ou demônio.
pajé....................feiticeiro, benzedor, curandeiro.
Quem quiser apreciar algumas de minhas telas acesse o blog atelierpacorrea.blogspot.com