Demais
(*)
Tem José Demais
junto de Maria Demais
unindo necessidades
satisfeitas jamais.
Têm ambos o afeto,
priva-lhes o teto.
Afugentam a solidão,
apropriam-se do chão.
Maria Demais repõe flor,
José Demais carece pôr
paredes nesse jardim.
Juntos anseiam sobrepor
cultivo de um sonho afim.
A pele que se molha,
boca cala o murmúrio.
Ele abastece a mola
dos desejos espúrios.
Fome aprofunda,
casal dorme de bunda.
Mas cresce a pança.
Folheiam na revista
uma cara de artista
para a criança.
Lua minguante, Maria desova
criaturinha nova
batizada Conceição.
Visita da sogra:
aprovisiona banho de picão,
leite de saco, lata de soja,
caldinho de feijão.
Os Demais sorriem enormes
e, doravante, Maria é mais.
Noite, quem dorme?
– Família, essa calma é fugaz.
Risadinha de mamã,
cara feia de papá.
Cada dia, amanhã,
de novo Maria: o que há?
Em casa, reino da paz:
José e Maria quites.
Anuncia-se para José
mais façanhas de Maria
– Entre os Demais,
acende tudo quanto existe.
José risca aqui mais perto
um quadrado desde a cisterna,
jeito de espichar o teto
sobre o resquício de terra.
Maria avisou: caçulinha Roberto
ó, espiando por baixo das pernas.
Arrepia mais a televisão
ligada no habitual horário
de sintonizar ordens do patrão
– sensacionais ofertas aos otários,
entremeio notícias de inflação
e partilha do salário.
Melhor a novela:
a filha elege o enxoval,
o pai escancara a janela:
– sufoco, calor é o mal!
Maria aponta galã na tela,
melhor o jornal.
– Deslize de José, Maria é mais!...
Maria-José: o mundo se abarrota
de José Demais e Maria Demais.
Descarrilam o trem, só não capota.
(*) Poema integrante do livro "Afeto da Verruma"