Invisíveis (ou Distante)

Tem os olhos fixos no jornal

Engole parte do café quente

Espera o vapor perder o efeito

Lentes desembaçadas e olhos no jornal

Vibra com a morte de Kadafi

Pergunta-se sobre a grafia: Kadafi, Kadhafi ou Gaddafi

Comenta ao vizinho casual

A satisfação de ver mortos todos os ditadores

Engole mais um pouco de café

Condena a quem quiser ouvir

Todo tipo de intolerância

Contorce-se

Abre os braços e deixa o jornal distante

Distância intelectual

Um papelão lhe esbarra nas costas

Uma voz distante teria pedido desculpas

Toma mais café

Não suporta o mundo como está

Joga um e outro comentário ao vizinho estranho

Volta os olhos ao jornal

Pede outro café

Irrita-se com o papelão

Como se fosse um mosquito incômodo

Não ouve o pedido de desculpas

Olhos fixos no jornal

Vê claramente que o Governo

quer abrandar os efeitos da crise

Assevera, sabiamente, ao vizinho desconhecido

Que a inflação vai estourar

Engole, rápido, mais café

Espera sair o bafo das lentes

Desce os óculos até a ponta do nariz

Olha, intelectualmente, por cima

Volta-se ao vizinho calado

Elogia muito a Hillary Clinton

por buscar o fim da guerra no Afeganistão

Toma mais café

Não sente, desta vez, o papelão nas costas

Nem ouve a voz fina despejar, receosa,

Um “desculpa, senhor”

Olhos sobre os óculos e fixos no jornal

Contorce-se

São tantas guerras, desastres, tragédia

O vizinho anônimo paga a conta

Lembra que também está na sua hora

Engole o resto do café

Levanta-se

Paga e quase esquece o troco

Diz estar longe

São as coisas terríveis do jornal

Devolve o sorriso à moça do caixa

Cabeça longe, distante

Quase cai ao tropeçar em uma menina

de sete ou oito anos

que separa papelões na calçada em frente à lanchonete

Esbraveja, xinga sem direção

Quase cai

As outras três crianças pedem, em coro, desculpas

Está distante, não ouve