O BICHO, de MANUEL BANDEIRA
O Bicho
Manuel Bandeira
Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
A fome, miséria humana milenar, transforma o homem em bicho na luta pela sobrevivência. Tal proceder não respeita cardápio, saciar é imprescindível para a vida continuar.
A reflexão do poema se hospeda em quaisquer sociedades. A imperfeição está na formação do individuo que indiferente privilegia a si. A sua mudez é necessária para o empenho da vida. A disputa pelo bocado se pronuncia perene, imorredoura. Compromisso intransferível que se impõe em qualquer latitude; sobreviver assume a criatura e o egoísmo alimenta seu corpo. O sentimento gregário serve neste ato apenas de convivência, não está afeto.
Manuel Bandeira, sob o olhar cristão, descreve uma cena cotidiana, onde bichos urbanos, para espanto do poeta, cedem lugar ao homem, que no desalento da vida, de forma exasperada, luta por comida como qualquer outro animal. O repasto não interessa.
A construção versificada expande os sentidos polifônicos e polissêmicos. O léxico cuidadosamente empregado se apresenta singelo, não precisa de ornamentos, visto que deformaria a intenção sensória do autor.
Diante das perspectivas internas que a composição comunica, saliento o narrema constituído no primeiro verso: “Na imundice do pátio” que remete a uma proposição de mundo e a implacável competição que se faz na confluência da vida, não importando em que arena se dá e tampouco os meios que se usa. Santo Agostinho diria: “Legem non habet necessitas” (A necessidade não tem lei).
A realidade da existência, moderada por códigos de conduta de nada serve quando: “A necessidade nos faz habituar com estranhos companheiros de leito” (Misery acquaints a man with strange bedfellows, Shakespeare, A Tempestade, II).
Paulo Costa
Abril-2011