A DIVORCIADA (FACETAS VII) & MAIS

FACETAS VII -- A DIVORCIADA

Cruel como mulher que foi trocada

por outro amor, ou corpo, ou travessura

e se decide, mau grado seu, de usura,

faturar para si cem mil amantes,

sem gostar de nenhum, só de amuada,

para provar que pode igual moeda

pagar a quem traiu e a quem enreda

na teia das mentiras mais chocantes...

Para provar a si mesma que é mulher,

para mostrar que consegue outro qualquer,

para indicar às outras que seduz...

para afirmar por fora que reluz,

chora por dentro, na sombra mais escura,

pelo esquecido gosto da ternura...

SIMULACRO

minha musa está quebrada, perdeu Luz,

seu braço se partiu, que me Guiava;

aos cegos olhos meus o brilho Dava:

firme indicava que retomasse a Cruz,

pesada e alvinitente -- a carga de Poesia

que tinha a transmitir, quisesse embora Não,

a toda a humanidade, amor de Maldição,

por essa senda estreita, "em rude Penedia".

e agora está aleijada, sozinha, Malferida,

seus braços não têm luz para Mostrar...

a sombra protetora se afastou, Mesquinha,

e assim fui alijado, a musa tão Querida

não mais derrama luz, meus passos a Andar,

qual segue um escudeiro os passos da Rainha.

FACETAS VIII -- A VINGATIVA

Cruel como mulher que ama e não é

amada por quem quer, que viu a outra

abraçar seu amor, rompida a fé,

que em si mesma tivera, quando noutra

ocasião de ilusão vaga se entregou,

de corpo e alma ao par indiferente,

que tomou-lhe o que quis e se afastou,

sem um adeus sequer irreverente...

E como se ergue a fúria do ciúme!...

capaz de fazer tudo então se torna,

embrutecida nessa angústia morna...

E do desprezo, que um simples juramento,

lhe provocasse a bile do azedume,

quebrantado ao acaso de um momento...

FACETAS IX -- A LADRA

Cruel como mulher que ama e descobre

que seu amor por outra se apaixona,

embora permaneça e se desdobre

em palavras de amor, com que ressona

em mentiras o que santo foi um dia,

por não querer perdê-la e ter a outra...

carinhos e atenções rouba destoutra,

que agora é seu amor; e propicia

constantes sugestões de seu afeto,

pois não pretende deixar o mesmo teto

em que usufrui do gozo conjugal...

e quando encontra a outra, os mesmos beijos

troca com ela, ao manto dos desejos,

qual fosse a esposa a outra, no final...

ARANHA

SE QUERES SER FELIZ, AMOR NÃO PEÇAS,

POIS SÃO INCOMPATÍVEIS ENTRE SI.

AMOR CAUSA DESGOSTO A MIM E A TI,

NÃO TRAZ TRANQÜILIDADE; É UMA DESSAS

IDÉIAS INTANGÍVEIS; NÃO SE PODE

TORNAR CONCRETO O AMOR SEM INCERTEZA

SE NÃO CORRESPONDIDO, ATÉ BELEZA

PODE CRIAR, SE A INSPIRAÇÃO ACODE,

MAS POR CERTO NÃO TRAZ FELICIDADE;

SE FOR RECIPROCADO, QUE DELÍRIO!...

SÃO MARES DE ENDORFINA LIBERADA...

SÓ QUE DEPOIS, A MÁGOA E A SACIEDADE

SE ACUMULAM NA TEIA DO MARTÍRIO,

EM QUE RESSECA A ALMA ENOVELADA...

A VIOLINISTA

por isso que te afastas: Porque pensas

que no instante em que teu corpo deres,

teu mistério esfalece, sem que esperes

conservar por mais tempo as cordas tensas

do violino que plange minha ternura.

Entregue o corpo em branda languidez,

nunca me deste, em meiga placidez,

porque não sei ler ainda a partitura...

E a esse arco viril, que nas mãos tomas,

recusas o estojo; e então retomas

ao stacatto de um sonho de martírio...

Não é assim comigo: eu quero mais,

muito mais que teus órgãos genitais,

embora os queira também, no meu delírio!...

FACETAS X -- A INSEGURA

Cruel como mulher que chora ao vento,

após perder o quanto mais queria,

após ter iniciado o que sabia

daria um fim ao relacionamento,

por ter fugido a quanto prometera,

ter descumprido a quanto assegurara,

ter repelido a quem tanto buscara,

pela incerteza do que lhe concedera.

Talvez por se sentir do amor indigna,

talvez por não confiar mostrar-se à altura,

talvez por crer, enfim, que falharia,

talvez então de achar não ser condigna

aquela união proposta; e, em amargura,

desaponto acreditar que causaria...

FACETAS XI -- A SACERDOTISA

Cruel como mulher que chora os filhos

que nunca teve, o sangue derramado,

mês após mês, o pranto menstruado,

o óvulo lançado aos mesmos trilhos

que segue a urina; que acolhem excremento,

de mistura à promessa desfeita da criança

que lançam aos esgotos; má esperança,

mês após mês, num ímpio sacramento.

Percebe as outras ao redor: realizados

deveres biológicos, levando assim a raça

a novas gerações, enquanto a ruga amarga

lhe brota sobre o rosto: seus lábios crispados

nem sabem mais beijar a quem lhe abraça,

enquanto espreita a mágoa e a dor se alarga.

CALIÇA

Agora é moda usar os corretores

dentários, para as presas alinhar,

para melhores sorrisos ostentar,

abrilhantando esgares sedutores...

Não são mais só crianças, são adultos

[de algo se sustentam os dentistas...],

buscando assim melhor mostrar-se às vistas,

ao invés de mentir dentes ocultos...

Ficam assim com bocas comerciais,

mostrando uma existência comedida,

passada no conforto, em paz, na calma.

Belos tais dentes, nada naturais...

Mas não os meus!... Gastei a morder Vida

e se partiram, qual rompeu-se a alma!...

FACETAS XII --- A MAQUINADORA

Cruel como a mulher sagaz que, por seus filhos,

é capaz de arquitetar qualquer maldade:

no escuro de seus olhos, somente surgem brilhos

quando lhes propicia, desde a mais tenra idade

um prêmio, uma alegria; e se dedica tanto

a que tenham sucesso, por que sejam felizes;

é a mãe que se derrama no mais copioso pranto,

é a cúmplice secreta de faltas e deslizes...

Mas quando são os outros, crianças ou mulheres,

velhos e moços, homens, ou simples animais,

pouco lhe importa a vida; é toda indiferença;

dispõe-se a pisotear as flores que lhe deres

e a tudo destruir, sem esquecer jamais

desse amor acendrado além da luz e a crença.

FACETAS XIII -- A FIDALGA

Cruel como mulher cheia de orgulho,

de seus antepassados, de glórias e fortuna,

da beleza que tem, ou julga ter, do entulho

das vaidades malsãs que coaduna,

estranho que pareça, a tal menos-valia,

porque, ao nome que traz, corresponder não pode,

nem dinheiro tem mais, somente a nostalgia

de antigos ancestrais, que a mente lhe sacode

nas memórias partidas, nessa ilusão vazia

de antepassados bravos, da fonte de nobreza,

das terras, das mansões, de toda essa riqueza

de que restou somente a vã aristocracia,

inútil, desgastada, até na descendência,

provando o cheiro amargo do travo da impotência...

FACETAS XIV -- A MERCADORA

Cruel como mulher que, de ambiciosa,

barganha o próprio corpo em busca de sucesso.

comprando o matrimônio em meretrício ingresso,

a troco de riqueza e posição honrosa...

A cada qual seu nível, a uma basta um teto,

os móveis, a cozinha, o gás, televisão,

outras se dão mais caro, na ambição

de obter um casulo macio como o de um inseto.

E assim sempre será, enquanto a mulher vende

e o homem compra o que ela tem a dar...

A mulher quer um ninho, o homem quer um lar,

um espera o prazer; e a outra, engravidar...

E é assim que gira o mundo e nunca aprende

à velha e antiga dança um dia se furtar...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 09/04/2011
Código do texto: T2897873
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