RAIMUNDO, O MENINDO DE RUA
A presente poesia foi escrita com as lembranças que tem o autor da região de Guanhães, MG, onde já morou.
1
A FAVELA
Casebre mal coberto
Com esteira de bambu;
Fogão com fogo preto,
Panela e feijão cru.
Sala bem branquinha,
Com o barro que se esfregou;
Cozinha torta e preta,
Fumaça esfumaçou.
Mentes que almejam
Durante o passa-tempo
Cheias de curiosidade
Buscar entretenimento.
Povo bonito dentro do preto
Da roupa rasgada, carvão.
Povo lavando roupa suja,
Esfregando com a mão.
Criança pedindo carinho
Erguendo a Deus louvor puro
Escondido lá no morro
Atrás do monturo.
Gente pobre, quintal grande,
Pouco dinheiro, café em coco.
Árvore secando no mato,
Gente carregando toco.
Fornalhinha, fornalha grande,
Panela de ferro cozido.
Menino barrigudo,
Que quase havia morrido.
Moça triste já perdida
Andando quase nua;
Maltrapilha da alma,
Moça que mora na rua
Casebre de favela
Construído de qualquer jeito.
Casebre triste mas nobre
Como a dor que treme o peito.
Favela dos esquecidos,
Favela dos malqueridos,
Favela dos ladrões.
Lar de amaldiçoados,
Com problemas aos milhões.
Favela dos sofridos,
Dos culpáveis,
Dos enxeridos.
Dos analfabetos,
Favela dos imprestáveis,
Desmiolados, loucos, despenteados;
Favela dos drogados...
Favela dos esgotos por cima da terra,
Favela das privadas por cima dos esgotos,
Favela das pernas enterradas nas lamas,
Dos percevejos invadindo as camas.
Favela da bagunça, da facada;
Favela da prostituta, da descarada.
Favela dos morros altos, do fedor;
Favela das artimanhas, do desamor...
Favela de gente igual,
A qualquer gente,
Em qualquer lugar,
Em qualquer continente!!
2
O BARRACO
Barranco de barro branco
Cavado no quintal;
Barranco desbarrancando
Sem fazer nenhum mal.
Embira bem trançada,
Arame enferrujado,
O liso tirado da venda
E da cerca o farpado.
Gravetos de eucalipto
Tirados da Florestal
Serra adentro,
Por cima do espinhal.
Foi comprada uma panela,
De carvão já toda preta.
Foi comprado um retalho,
Que de caro deu careta.
O barro branco tá lá,
Na gamela esburacada
Que é passado com a mão
Na parede mal acabada.
Banco branco de madeira,
De algum pau mal traçado,
Pois quem não tem serra no mato
Corta tudo no machado.
Esteira de taquara,
Tecida no capinzal;
Monte de paus roliços,
Frutos do bambuzal.
Cisterna mal furada
Da lata que tira nada;
Sapo que canta no fundo
Da cacimba entulhada.
A casa toda tecida
Já estava quase pronta,
A taquara e o bambu
Amarrados ponta a ponta.
A cabeça de boi no toco
Contra o amaldiçoado:
A ignorância do sertão
Presa dentro do cercado.
Com o barro do buraco
Se cobre o pau-a-pique
E o barraco novo em folha
Na favela é o mais chique.
3
O CASÓRIO
Um homem vai “ajuntar”
É o casamento do povo pobre
Que não pensa em pagar
Por isto nem um “cobre”.
Este homem aceitou
A moça triste da favela
Mãe solteira, desamparada,
Mas mulher muito bela.
Como se usa lá em Minas
No interior assim falar:
“Um bom homem resolveu
“Enfim me amparar.”
O armazém fornecerá
Por semana, na caderneta;
O homem tem de penar
Dia e noite na marreta.
A mulher lavando roupa
Para família abastada,
Mas a “grana” que ganha é pouca,
Não dá pra quase nada!
O menino, que mais na rua
Vive noite e dia,
Vai ter uma casa sua
E já sente ar de folia.
Raimundo era seu nome,
O porquê nem o sabia;
Vivia morto de fome
Comer era o que mais queria!
Lá vem ele maltrapilho,
Sua face avermelhada,
Segurando o resto do milho
Que não serve mais pra nada!
Lá vem ele maltrapilho
Sua face avermelhada;
De tantos choros, do choro é filho,
E a lágrima, irmã amada!!
Lá vem ele tão tristonho
Sua face avermelhada,
Tropeçando no próprio sonho
Que sonhou lá na calçada.
Lá vem o menino de rua,
Lá vem dobrando mais uma esquina...
Rouba frutas na cantina,
E já lhe roubaram a vida sua!
Lá vem ele maltrapilho,
Sua face avermelhada...
Mostrando o lado puro
De sua alma maltratada
Esquecido pelo povo,
Ninguém quer ajudar:
Batem-lhe mais, e, de novo
Sempre o vão maltratar!!
Vai ter um padrasto,
Um jirau será sua cama;
Tem casa nova já feita,
O orgulho a si reclama!
Os noivos já vêm chegando
O casal bem abraçado;
Não têm anéis nos dedos,
Não têm papel passado!
E se o contrato do casamento
Não existe na “caneta”,
A honra tá marcada,
Destas vidas, uma faceta.
Os vizinhos já receberam
Os amigos da redondeza;
Cantaram a fome, a dor,
A doença e a pobreza.
Contaram casos de morte,
De tiros, de maestria;
Contaram lendas afoitas
De bandidos na folia.
Na cachaça e na bagunça
Tava o casório realizado,
Para eles é mesma coisa,
Casado ou ajuntado.
4
FESTA, CACHACHA E FACÃO
Casamento realizado,
Foram os homens madrugar:
O grupo na venda do morro
Entrou pra festejar.
Entraram juntos na venda,
Escolheram lá uma mesa:
Beberam tanta cachaça,
Que ficaram de moleza!
Arranjaram algazarra,
Da briga saiu punhal,
Na rua de ruim ambiente
De novo venceu o mal!
O homem que amigara
Há poucas horas, na favela,
Morreu na porta da venda,
Com um corte fundo na goela!
Chegaram à delegacia
E conheceram o delegado
Que de tudo não gostando
A cada um deixa trancado.
No outro dia bem cedinho
O assassino foi liberado,
Junto com outros bandidos
Que o morro tem formado.
São tão bandidos quanto são
Os de colarinho branco
Que para a sociedade
São heróis e outro tanto!
Corruptos e odiosos
Agem na dissimulação,
Não pegam da navalha,
Nem matam com sua mão
5
MENINO MALTRAPILHO
E o menino Raimundo
Que não conhecera pai
Ganhou um em certo dia,
Que nesse mesmo dia se vai...
A mãe nem chora, coitada:
De manhã era solteira,
De tarde era casada...
Mas ficou viúva naquela madrugada!
Raimundo via suas lágrimas caindo
Molhando o chão batido,
Não via em ninguém amor,
Nem em ninguém um amigo!
Saiu perambulando
Pelas ruas da favela...
Sua alma sempre chorando
Por algo que sempre anela...
Batendo o pezinho
Pra lá e para cá,
Penetrou beco adentro...
Saiu do lado de lá...
Ninguém mais ouviu falar
Do Raimundo por ali,
E já grande foi parar
Nas terras do açaí!