O grito do silêncio *

Havia naquela sala de aula

Um grito que vinha da alma

O motivo de estar ali era observar a agitação

Da criança que quieta não parava não

Bem ali, do lado da agitação, comovia um grito

Que mais parecia um mito

Para ouvir o grito era preciso atenção

Exigia sutileza e dedicação

Um grito estranho...

Mudo, sem tamanho...

Acompanhado de olhos caídos...

Sofridos...

Grito calado, parado no seu canto, na cadeira da sala

Um longo tempo de espera, um tempo que cala

Aquela criança parada ali era criança não: isso é fato pleno

Aquela criança ali era gente grande, dentro de um corpo pequeno

Olhem, vejam bem, procurem o brilho, a sensatez

Criança brinca, não tem mudez

Aquele grito mudo calado

Era um grito desesperado

Tempo depois o grito materializado, sem esperança

Agora era mais alto, era a perda da criança

Aquela criança da sala de aula, da escola

Foi rápido sem demora

Há tempos estavam roubando sua infância

Tratavam seu corpo com brutalidade, não davam importância

Por tantos olhos a criança passou

Para muitos em silêncio gritou

Grito sem eco, com renúncia

Grito de socorro, de denúncia

O grito que sem lei, lavra

O silêncio da criança, contra nossa palavra.

***

(Dedicado a aluna R., falecida aos 9 anos em 2005, de infecção generalizada nos órgãos internos. O motivo da enfermidade era que sofria de abuso sexual desde a mais tenra idade. Fiquei chocada, revoltada e triste. Quis entender tamanha brutalidade. Brutalidade que se abrigava nos mais diversos aspectos: em quem percebia e nada fazia, em que não percebia, em quem cometia etc. Quando soube chorei, sobretudo por perceber o quanto o sistema é cruel. Imbricado em muitas complexidades e perverso do começo ao final. A morte de R. pra mim representa: miséria, descuido familiar e institucional, maldade, egoísmo, preguiça. Havia conhecido a menina mês e meio antes. Percebi a palidez, conversei com a coordenação da escola, conversei com um amigo, "algo não estava bem". Continuei a perguntar por ela e a coordenação da escola dizia: ela está bem, mudou... está feliz! FELIZ???? Depois do ocorrido, falei com muitas outras pessoas: professores, congressos de educação, escolas de administração pública. Não me calo. A Secretaria de Educação me olhava meio de soslaio, 'que mania é essa de querer mudar algo que é normal? Vai querer mostrar nossas fragilidades?' Meu estudo dialoga com essa premissa. Como o sistema educacional lida com crianças como R. e muitas outras que por não se encaixarem no padrão, ou são postas pra fora, ou ficam invisíveis em algum espaço na sala de aula. Sem querer apontar culpados: se professor, direção da escola, não é essa a questão, não é isso que resolve nada. Porém, acredito que é muito importante discutir todos os fatores que contribuem para situações como esta. É necessário e urgente proteger essas crianças. Passar incólume por isso é demais. Melhorei um pouco depois que escrevi a poesia, mas a inconformabilidade ainda pousa, ainda bem, nunca quero me acostumar com isso.)

* Republicado

***

(Minha pausa tem a ver com essa questão. Disserto sobre a organização escolar em ciclos de aprendizagem e sua forma de tratar alunos como R.).

Isabel Cristina Rodrigues
Enviado por Isabel Cristina Rodrigues em 15/08/2010
Reeditado em 18/07/2011
Código do texto: T2439987
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.