Cruel ou 2 X 0

Qual será a sua reação

quando, ao acordar de noite e acender a luz,

me vir dormindo de boca aberta?

Quando, ao me puxar pelo braço

pra atravessarmos a rua,

sentir-se temerosa de que sejamos atingidos pelos carros?

Quando quiser trepar e entender

que só se for no banquinho da cozinha,

ou numa árvore, como lhe disse que fazia quando tinha dez anos?

Quando a cachorra afundar o nariz

no canto do sofá

em que costumo sentar?

Quando tiver que andar

extremamente devagar

por minha causa?

Quando tiver que pedir

que me coloquem

de novo no CTI?

Quando tiver que dormir mal

no sofá estreito

do hospital?

Quando tiver que admitir

que tudo que não fiz

não deu certo.

Quando se reconhecer,

ao me trocar,

com o mínimo de repugnância?

Quando se sentir com esperança

de que dessa vez

eu me vá?

Quando quiser que eu dure mais

para que você não se sinta

arrependida?

Quando tiver que limpar

minha boca

de restos de comida?

Quando me presentear com um belo texto

no dia do meu aniversário

e não ficar sabendo se o consegui entender?

Quando colocar pra mim a mesa

e vir que só venho sentar

se for com a sua ajuda?

Quando for mais um “Deus nos acuda”,

na nova crise que eu tiver,

me colocar rapidamente no carro?

Quando souber,

pelo catarro,

que não melhorei coisa alguma?

Quando escutar por aí

que “ele tinha sessenta

e ela trinta quando se conheceram”?

Quando me pentear

sabendo que o efeito

não fará a menor diferença?

Quando me levar pra quarar ao sol,

como o cadeirante que vimos

naquela rua lá de Conservatória?

Quando lembrar das histórias

que não tinham muita graça,

mas que eu lhe contava?

Quando jurar que a desgraça

não tem nada a ver

com a velhice?

Quando esquecer o que eu disse

um dia à luz do luar,

só pra você me jurar que nunca iria esquecer?

Quando você constatar

que, além de tudo,

estou ficando cego?

Quando souber que não nego,

como nunca neguei a você,

que não deveríamos ter prosseguido?

Quando souber que tudo

que já não consigo,

é o que eu concedo a você?

Quando quiser de novo meter

e ver que só se for

o dedo na manteiga?

Quando, enfim, eu for sem me despedir

e você quiser insistir

em saber porque fui tão cruel?

Rio, 09/10/2005