a alegoria
uma homenagem à guerreira Zuzu Angel
salve Zuzu Angel
e todo anjo zulu
ou branco
que existam nas favelas
a alegoria sobe o morro
e se estabelece
bem pertinho do cruzeiro
onde falta justiceiro
e onde sobra covardia
como também nas favelas
planas estabelecidas
na zona oeste da cidade
e também naqueles morros
que ficam perto do centro
e em cada um dos quatro cantos
da zona metropolitana
e não desmilitarizada
onde se é atingido
por uma rajada ou porrada
ou uma bala certeira
pelo uso indevido
de uma camisa vermelha...
onde a bala resvala
o tênue fio da telha
como o vento que passa
roçando o nosso cabelo
quando o respeito ao desvelo
de uma mãe aguerrida
é sufocado e banido:
ela não pode chorar
a morte do filho querido
que não poderá sepultar
como nos dias sombrios
de uma infeliz ditadura
quando as pessoas sumiam
como a evaporação
e os paredes ficavam
sem qualquer explicação
de como se dera a magia
e a alegoria não ri
políticos – perfídia
polícia – prevaricação
presos – população
poder – (des)proteção
perdidos ficamos nós todos
no meio do nivelamento
de ações que estariam opostas
costumes tão distanciados
que não descobrimos pra onde
os sonhos nos foram levados
aqueles que nunca tivemos
ou que não foram autorizados
ontem alguém foi metralhado
no meio do nosso quintal
e o que seria anormal,
a gente queria acudir,
porém a voz do comandante
tonitruante ordenou
“aqui só se bebe água”
e eu me lembrei do romance
de George Orwell, e da Sorbonne
de Harvard, da UFF e da USP
do cuspe que além da favela
não dá pro garoto cuspir
e que logo ele estará
no mundo do qual quer fugir
pois muitos preferem morrer
a ter que pra sempre viver
no meio da contradição
quando ela é só a condição
de se ver a lua brilhar...
mas a alegoria já vem
descendo do morro, aflita
pois quer que eu nunca reflita
sobre a cor do vestido que tem
e que usa com laços de fita
ela vem me fazer a visita,
chega humorada e contente
pergunta se vai tudo bem
e o que se tem pro jantar
Rio, 16/08/2006