As Crianças do meu Prédio
As crianças do meu prédio
não conhecem lagartixa,
não brincam de pega-ladrão,
são pegadas pelo ladrão;
não brincam de pés no chão,
não brincam de pique-cola,
mas fazem “colagem”;
não jogam bola de meia,
não ralam o pé no chão,
não furam o pé no prego,
só na televisão;
não fazem mais cochichos,
comunicam-se aos gritos
pra superar o barulho do bate-estacas,
do martelete, da construção,
ou das obras das concessionárias;
não fazem mais concessão
aos adultos, adultos pequenos que são.
As crianças do meu prédio
conhecem o baseball,
esquecem da amarelinha,
jogam o futebol
no asfalto, pois o terreno baldio
(do Sérgio) dourado ficou;
as crianças do meu prédio
tomam banho de um sol
que ainda teima em queimar,
conhecem a sua bandeira,
não a da brincadeira,
aquela vermelha e azul
cheia de estrelinhas,
que não estão na noite de São João,
como as histórias de seus pais;
somente ali é que, então,
se lembram do verde-amarelo,
se lembram de tanto balão,
como numa tarde de junho de 58,
como as histórias de seus pais;
as crianças do meu prédio
são todas muito iguais.
As crianças do meu prédio
conhecem tributação,
fazem até curso, promovido pelo estado,
financiado pela nação,
em favor da alegação
de que contribuintes serão,
mas será que já não são?
As crianças do meu prédio...
Se ouviram o Bem-te-vi que da área escutei?
Não teria sido possível, bem sei,
pois se foram com o progresso
as árvores da minha rua,
e elas sabem que passarinhos gostam de árvores
(e sem árvores... melhor esquecer delas e dos passarinhos,
tomemos outros caminhos),
aquelas árvores que irão correndo desenhar
daqui a alguns anos quando forem disputar
o seu primeiro emprego, e o outro, e o outro...
O termo elas usam, a idéia ainda têm,
mas será que já subiram numa árvore
ou caíram de alguma?
Bem, se não quebraram galhos,
ou vão quebrar muitos
ou vão ter alguém pra quebrá-los.
As crianças do meu prédio
são cheias de informação;
não havendo o quintal,
brincam mesmo no saguão
(quando lavam o play-ground)
do edifício, onde encontram o carteiro,
e também o tiro certeiro,
ou uma bala perdida,
e, é claro, o porteiro;
ou brincam mesmo na sala,
perto da televisão,
ao alcance de um jornal no sofá.
As crianças do meu prédio
não conhecem o funileiro;
vão amolar as facas da mamãe
na lojinha ao lado da praça,
pela qual, é certo, não passa
aquele homem com aquela roda de um barulho irritante,
os pais lembrando num instante,
e com certa admiração,
desse tipo em extinção.
As crianças do meu prédio
todas sujinhas de terra?
Chega a ser talvez utopia.
Não, é falta de higiene.
É não, seria.
Se falar em amendoeira
pras crianças do meu prédio,
elas vão pensar em chá,
chá de jaboticabeira,
chá de flor de laranjeira...
Procurar bicho em goiaba?
Bicho, goiaba só na feira.
Já não sobem na mangueira,
já não sobem a ladeira;
o elevador vem até ao play-ground,
já nascem cansados demais.
As crianças do meu prédio
sonhando colecionar borboletas?
Será que sonham?
É claro, milagrosamente, sim,
com o cofrinho da Delfin,
ou com marcas de carro,
ou com “a mulher do meu pai”,
ou com a mamãe também,
ou com o próprio pai,
ou com os irmãos,
ou com ninguém;
com o mês que vem, ainda bem.
Será que sonham andar de trem?
Não me refiro ao japonês,
ou nos subúrbios da Central.
As crianças do meu prédio
são de outra sucursal.
As crianças do meu prédio
ainda têm sarampo, coqueluche, catapora,
muito embora sem saber como é o pé de amora.
Mas com tanta prevenção,
com a tal vacinação em massa,
é muito mais comum a dor de cabeça,
a enxaqueca, o stress, a análise de grupo,
a catarse ou não sei quê mais.
As crianças do meu prédio
não ficam mesmo pra trás.
As crianças do meu prédio
sofrem de perseguição,
brincam de assombração,
zombam da escuridão;
mas, confinadas no apertadinho da área de serviço,
se contundem com a imensidão.
Porém, ainda jogam pedras nos mendigos,
ou acham um bêbado que lhes corra atrás,
e, apesar da importação,
ainda falam português.
É claro, são melhores em inglês.
As crianças do meu prédio
não ligam no lago os peixinhos
dourados, bonitos e grandes,
no laguinho de concreto construído no jardim
da área de recuo.
As crianças do meu tempo,
num rio de águas às vezes servidas,
recolhiam num vidro, entretidas,
vários peixinhos pequenos e dourados,
por certo tempo guardados
num vidro de doce de compota em cima do móvel.
Mas todo esse perigo de doença
foi conseqüência da falta de urbanização.
As crianças do meu prédio
talvez entendam a explicação,
talvez entendam até mais de poluição
que de brincar de peixinhos
nas margens de um rio sujo.
Que as crianças do meu prédio
não sejam crianças talvez,
é de fato insensatez.
E as crianças do meu tempo?
Lá venho eu com meu tédio,
delas querendo lembrar...,
mas sei que hoje não têm lugar,
embora se possa achar
que elas tiveram vez.