O SEXO DOS ANJOS
E se eu for morar em baixo da ponte?!
Mas que ponte?
Ponte já não há!
Só na memória dos esquecidos,
É que ponte é lugar,
Assim se morre e se vive na ponte que é lugar,
Para onde se vai, quando não há mais lugar!
E se eu for para o morro?
Mas que morro,
Se morro é lugar fictício,
E se no morro, morrerei,
Prefiro n'outro lugar, onde eu morra e seja enterrado
Com pompas e honras de chefe de estado:
Meu estado natural de pobre e favelado!
Dormirei na marquise hoje,
E amanha
Será outro dia, n'outro lugar,
Pois, de coração vazio não se vive
E de tanto perder, meu coração, já é sem razão
Andarilho de linha de trem, ocupador de vagão
Que assim como eu, esta liberado de ser cidadão!
E se eu for para a invasão?
Mas que invasão cidadão!
Tudo aqui esta vendido,
Não vê?
É propriedade particular,
Se invadires, deduzo que não sabes seu certo lugar!
E para ti, restara tua cova medida e um verso Severino
A ser dito pelo filho aflito que tu deixaras Benedito,
Verso de lamento? Ora, o que há Benedito!
Digo-te; porrete de policia, não mede cabeça
E cabeças medidas não faltam se crias conflito!
Cidadania Benedito é alegoria!
E seu eu chorar e Deus não me escutar?
Ora chore, chora Benedito! No céu tu tens lugar,
Seja o teu; o grito:
O filho do homem não tem certo lugar!
Mas tu Benedito tem espaço no céu
Teu ultimo lugar!
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Morte e vida severina (trecho)
A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito,
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
jÕAO cABRAL de Melo Net
iMAGEM
*Quadro “Os Retirantes”, de Cândido Portinar,
*São Benedito o mouro - Santo cultuado no Brasil em especial pela população negra ,
*Também é negra a maioria da população residente em favelas e periferias das grandes cidades.