Dê-me tua mão (Pedido de socorro feito por um viciado em crack)
Dê-me tua mão,
Eu preciso de você.
Por mais que tentes me ignorar,
Ainda que não queiras me enxergar,
Acho que podes me entender.
Sou resultado de uma combinação explosiva:
Filho de quem? Medo do além.
Moro na rua, moro no morro,
Meu lar é um precipício,
Ainda que seja um sacrifício,
Eu preciso de você! Socorro!
Órfão de pai e carente de mãe,
Sem família, o tráfico me adotou,
Busco no crack o remédio pros meus males,
Uma forma de não encarar minha realidade,
Ainda que por uns poucos minutos, sou feliz.
“Sinto-me captado pela energia elétrica de todo o mundo...
O azul ficou mais azul...
Um colorido diferente... excitação como nunca tinha sentido antes.
Prazer puro, intenso”. F., 24 anos (1)
Mas a euforia dura muito pouco...
E logo, cede espaço a uma depressão profunda.
Sinto dores em todo meu corpo,
Preciso de mais um trago.
Como um garimpeiro, procuro por cinzas,
Resquícios de pedra no chão...
É inútil... já fumei tudo...
A dor em meu corpo aumenta, meu coração parece saltar do meu peito...
Tremores, paranóia, desconfiança...
Preciso de mais um trago.
O dinheiro é precário, não tenho emprego,
Não tive escola, não tenho salário.
Estou debilitado, cansado e sem me alimentar.
Minhas mãos estão queimadas e meus pés descalços.
Tenho medo do espelho, de encarar a realidade,
Não tenho forças pra lutar contra o vício,
Não consigo sair desse precipício,
Eu preciso de você.
Quero estudar, me formar...
Queria ter uma família, ter um lar...
Poder me alimentar, ter com quem conversar,
Ter com quem poder contar.
Mas sou fruto do acaso, sou obra do descaso, sou invisível.
Ninguém é por mim, e sou contra todos.
Preciso de atenção, preciso de carinho...
Ainda que seja um sacrifício.
Dê-me tua mão.
1. UCHÔA MA. Crack: o caminho das pedras. São Paulo, Editora Ática, 1996.