Última fotografia
Esse flash
Essa luz de azougue
A captar rapidamente a imagem e a expressão
Tuas mãos atadas a segurar sentimentos soltos
Seus olhos melancólios
Dependurados no abismo
Quem diria que todo cenário,
Que toda a indumentária
E um certo sorriso de canto
De boca
Seriam tão pungentes
Quem diria que um único cristalizado instante
Poderia revelar umbrais esquecidos
Diariamente
Meninos famintos e dormindo no chão
Igual a cão sem dono
Prédios a quase desabar
Portas gemendo a dor
De ver passar tanta gente
E o tempo lhe corroendo pelos cupins
Estavas com um ar grave
Como se aspirasse oxigênio feito de chumbo
O sol não o banhava como sempre
Era sombrio e pálido
Ao invés de brilhante e dourado
E diante do clic
A eternidade negra impressa pela luz
Revelaria clarezas contidas
no cotidiano
Fotografia
Escrevo essa sua fisionomia
montada em preto e branco
Ou dispersa em cores como
Falésias a dispersar sob os pés
os caminhos percorridos
A fotografia mostra
uma nesga de sua personalidade
Seus óculos ávidos de visão alguma
E o tempo ávido de eternidade
e imprecisão
Espaços largos e dúbios
Lastros perdidos em mares revoltos
Um botão desabotoado
Uma boca fechada como
Se calasse a dor de haver sido
Tudo aquilo além do que imagem pode
Apenas resvalar...
“Nunca ninguém se perdeu, Tudo é verdade e caminho.”
Fernando Pessoa