HONRICÍDIO
HONRICÍDIO
Há um corpo estirado no chão da sala de nossa casa.
Parece não respirar. Parece estar em coma, a perder o sopro da
vida. Dá impressão de que seu sangue esteja empreendendo uma rápida díaspora, de que aquela Terra, subitamente, tenha se tor-nado inóspta, tamanha é a alegria que, na sua fronte morna, fulgurantemente, cora.
Há um corpo estirado no chão da sala de nossa casa.
Parece que pede socorro, mas é vão: ninguém o ouve.
Estranho que nós não o ouçamos, estamos tão próximos da sala.
Estamos em nosso quarto, sobre a nossa cama, a assistir aos programas que passam na televisão. O quarto fica á pouca distância da sala: na verdade, logo após o corredor, o qual, em suma, conecta os dois recantos de nossa tão bela mansarda.
Há um corpo estirado no chão da sala de nossa casa.
Porra, será que o volume do televisor está assentado no cume de uma montanha muito elevada? Será que a voz do corpo moribundo trilha uma via muito silente, radicalmente tácita?
Ah, por que, por estarmos tão próximos, não conseguimos ouvir a voz que brada a sua prece desesperada?
Há um corpo estirado no chão da sala de nossa casa.
Sim, talvez estejam a pilhar sua voz as aves de rapina.
Talvez os leões do vil metal, tão logo o tenham abatido,
hajam-no esgarçado e devorado a língua.
Quem sabe, abutres, gaviões, raposas, hienas e formigas da mesquinharia,
cada um com seu quinhão, possam ter comido a sua carniça.
Há um corpo estirado no chão da sala de nossa casa.
Sim, nós o vemos, o vemos ao abrirmos a porta da alcova:
com ele, há dois homens de paletó e gravata. Eles nos acenam, dizendo que irão ajudá-lo, mas, ao mesmo tempo, fazem descer sobre ele uma chuva de bofetadas que lhe molham cruelmente a cara.
Nós, bem, nós achamos graça!
barbosia@zipmail.com.br
JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA