Lá vai o preto escrever poesias

Lá vai o preto escrever poesia

Senta-se e digita no computador

E acelera o dedo

Como quem sabe dirigir

Põe o pé na embreagem do carro.

O negro não sabe cantar

Ora, dá-se, um negro não sabe cantar!

Pois não sabe esse negrinho fajuto

Té parece sua mãe não cantava bem!

Pois brilhava no solo da igreja batista

Com o timbre raro de sua voz de contralto

E, ora, pois, seu pai boiava. De longe

Se ouvia sua voz ecoando

E o gado respondia e mugia,

Batia o chocalho, vinha atrás do som.

Esse negro nunca aprendeu jogar capoeira

E nunca vai aprender

Cintura dura, agora com duas próteses

Nunca dançou nem forró, nem samba,

Xote, xaxado. Só balançou um pouco de axé

Este sim, saltitou na sua tenra juventude

Na capital da Bahia dos anos oitenta.

Quis em um tempo ser ator

Teatralizar e desistiu quando

Um colega lhe disse só iria

Fazer papeis de escravo ou ladrão.

Não quis essa sina nem na interpretação.

Não encontrou o palco e

Nem o palco o encontrou.

Esse preto vida empurrou para cá e para lá

Com gente dizendo não ser nada

E nem vai ser nada

Pois sim, não é nada

Não é ninguém.

Não é e restou na ninguendade

Como a pardaria brasileira!

Esse pardo preto, preto pardo,

Negro indígena, indígena negro

(Descendente dos paiaiás

E, por certo, dos nagôs e daomeanos, bantos)

Deu agora para escrever poesias.

Mas, ó paí ó! Poesia é coisa de preto?

É sim, meu senhor

Por acaso nunca reparaste nos sambas

E nos compositores sambistas?

Nos jongos e nos jongueiros?

Nos cantos de trabalho e nas canções de lamentos?

Pois foram feitas por preto

E os dizeres, os repentes, as modinhas

E é coisa de indígena

Inventam lendas, cantigas e poemas.

Poesia de preto é poesia da vida,

Do eito, do dia no finzinho com o sol se pondo

Do dia amanhecendo e a lua indo dormir, essa noctívaga!

Do amor no peito, de não sair da cabeça aquele rapaz bonito

Que outro rapaz pardo e preto dá vontade de abraçar, beijar e amar

Ou da negra faceira e fogosa que a outra preta enche os olhos pra ver

Ou do banto forte do eito que a nagô não se aguenta de vontade de

Se deitar com ele por sua força de macho estampada no corpo todo

Ou da haussá bela e esbelta que dança a umbigada

E faz o daomeano se molhar todo de vontade de viver.

Poesia de preto ocorre na batida da mão e do pandeiro

Comendo um tira-gosto feito pela iaiá velha ou

Pela mãe que também joga as cadeiras para cá e para lá

E tem muito samba no pé e toma um traguinho (ninguém é de ferro)

E ri se divertindo, ora, dá-se, mané, quá.

Poesia de negro chora, lamenta

Faz o outro dia chegar para renovar a luta

Ou adormecer de vez no fim de somente uma vida

E começo da força axé da ancestralidade.

Poesia de negro é forte como a vida

Se é alegre com os deleites quentes

E triste com as dores e mortes.

Mas a vida vem assim

E vida é poesia com tudo que ela traz.

Rodison Roberto Santos,

São Paulo, 01 de janeiro de 2024.

Rodison Roberto Santos
Enviado por Rodison Roberto Santos em 16/08/2024
Reeditado em 21/08/2024
Código do texto: T8129951
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