Dezessete de fevereiro
não
eu não quero falar de mim
eu não quero falar sobre mim
eu não quero falar mais de mim
eu não quero falar menos de mim
não, nunca fui e não sou assim
prefiro falar do lindo azul vivo
que forra de fora a fora
o revestimento do céu
ou falar da gaivota agiota
que cedeu um grão de milho
para um passarinho
mas pegou outros dois grãos
e saiu de fininho
ou falar da quantidade espichada
de indecifráveis pichações
que poluem boa parte
dos prédios velhos do bairro
(desse bairro e de qualquer
outro bairro brasileiro)
[pichações que falam, falam
falam, falham, falham, falam
e não dizem droga nenhuma]
prefiro falar das 20 placas de "vende-se"
empoeiradas e penduradas na mesma rua
rua que também deseja ser vendida
de tão amargurada, quase esquecida
prefiro falar das amendoeiras
que refrescam várias partes do Rio
e oferecem aos mendigos e morcegos
frutinhas amarelinhas por fora
escarlates na polpa madura
(assim como os mendigos,
anêmicos por fora
escarnecidos por fora
mas ainda encarnecidos,
apesar de tudo, apesar dos pesares)
prefiro falar do Kadett bem cuidado
parado na calçada maltratada
cujo piso possui mais buracos
do que qualquer calçada
nunca pavimentada
das ruas sem nome da lua
prefiro falar do cidadão
(que não vota, não veta
só vai e volta
nem sei se vive)
carregando restos de tudo
e sobra dos sobrados
tudo isso para garantir
o quase almoço
de daqui a pouco
enfim, prefiro falar
sem filosofar
dos hidrantes, hidratantes
tratantes, destratados
da gordinha de óculos
do magrelo na sorveteria
de morango, coco, abacaxi
dos abacaxis descascados
das batatas quentes
das escolas interditadas
da insegurança armada
da igreja fechada
da clínica adoentada
e desta manhã
que respira tranquilidade
que respira com tranquilidade
apesar de tudo, apesar dos pesares