Retratos de nossos cotidianos

As camas de nosso antigo amor estão doentes e não se queixam;

As mesas acumulam copos cheios de lembranças do que poderíamos ter vivido,

Almoçamos e depois vamos dormir em salas distintas,

O relógio no pulso, o relógio da catedral, nosso coração é um relógio inútil,

[E nossas mães estão chorando e rezando sozinhas em seus quartos.

Os travesseiros no sofá atirados posteriormente ao chão,

Os frutos do amor apodreceram antes mesmo de serem colhidos

Pelas nossas mãos ciumentas, esperançosas e incrédulas.

As árvores do quintal não brincam mais com as sombras de nossas crianças,

[E nossos irmãos não conhecem as lágrimas que o silêncio enxugou de nossos rostos.

O abraço do amigo, que não apareceu em nosso momento de solidão,

Foi engolido pelos ventos da rua por onde caminham nossos pensamentos suicidas;

O vinho despejado outra vez no copo ignora todo o nosso sofrimento,

Nossas almas não olham mais para as estrelas: o brilho de se viver pulou do farol,

[E os nossos filhos são manchetes secretas dos jornais de nossos erros ancestrais.

Os pés que retornam do trabalho depois de mais um dia vão e exaurido olham para as pedras, afagam os muros, abrem o portão da garagem,

E tudo é desconhecido, tudo é silencioso, porém todos falam, e os olhos rogam e querem dormir.

Os risos, as antigas piadas e anedotas, o telejornal, todo diálogo é o mesmo labirinto: o lindo vaso com flores de plástico na janela é mais cuidado e protegido do que a

[Alma daquela criança que afogamos dentro de nosso sangue coagulado e rotineiro.

O jornal matutino nas mãos com as notícias ainda exalando a impressão fresca das violências e corrupções em se viver,

Leite no café, manteiga no pão, conversas para ocultar o silêncio incomunicável das famílias, o silêncio dos lábios que se beijam;

o silêncio de Deus e dos santos esculpidos de gesso nas

[Capelas, no recanto dos quartos, nas mecas e nas feiras da alma;

O silêncio das cadeiras cobertos de pó e de testemunhos; o silêncio do coração antes de exalar seu último instante de vida perante um anjo bêbado; o silêncio dos bilhetes e dos cartões de natal esquecidos debaixo do colchão da cama, o silêncio do pai que ensina ao filho suas crenças, o silêncio de Marta extraído do fundo de uma garrafa

[De vodca e de um alcatruz de calmantes;

O silêncio das lágrimas que o véu da noite encobre na solidão de nosso quarto enquanto todos dormem. O estupendo e gritante silêncio do mundo que acorda cada pedra, cada casa, cada calçada, cada olho, cada respiração, e ao entardecer emudece com outras bulhas o silêncio do Amor, da Caridade e da Fé;

[O Silêncio da alma de sempre se morrer antes da plena morte abstrata e física.

Os retratos da família sorridente e feliz nas paredes das salas estão corroídos e crucificados e chicoteados pelo tempo, pelas discussões e mágoas não esquecidas;

Alguém toca a campainha da casa, e o cheiro de ressentimento ecoa pelos cômodos, toca a tez da escada e dos livros, cria outras conversas e subterfúgios e sorrisos,

[E o corpo sagrado de Cristo está novamente dividido, esquartejado e escondido.

O beijo, de quem amamos e esperamos, conheceu novos lábios no outro bairro,

Em outro bar, em outra igreja, em outro prostíbulo, em outro ônibus, tanto faz!

A tristeza alegremente acende uma vela e uma prece no templo apedrejado de nosso ser,

Quando nossos olhos leem a erosão dos cadáveres que somos e abrigamos em nós;

[Os álbuns de nossa infância ainda sangram por nós algumas gotas de esperança!

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 20/01/2023
Reeditado em 20/01/2023
Código do texto: T7699948
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