O resgate da mulher selvagem

A mulher caminhava livremente, com seus cabelos esvoaçantes nas curvas dos dias: tocando, vendo, ouvindo, sentindo tudo ao seu redor. Certa vez, distraidamente se perdeu no trajeto. Neste instante de confusão, foi atingida por uma pedrada, caiu no leito duro da terra, revestido de ervas daninhas, espinhos e ali ficou, jogada, paralisada, ferida.

Com a força da queda, perdeu a consciência e sua mente vagueou por lugares desconhecidos. Tal como animal acuado, inerte, teve suas mãos decepadas, sem reconhecer quem cometeu, tamanha covardia.

O cenário a angustiou, sem saber onde estava e como poderia dali sair. Se sentia perdida num país de horrores, recheado de angustias, traumas, dores e medos.

Compondo este carrossel tragico, sua visão também foi tirada com a pancada, e sem ter como enxergar e tatear, a andarilha ficou sem rumo, sem rota, perambulando pelos labirintos da vida

Dia após dia a figura feminina, antes livre e envolta de sonhos e planos, passou a mendigar alimento e afeto, pro corpo, pra alma, pro coração. Seu teto era tecido de estrelas que não podia enxergar e seu cobertor a solidão que a abraçava. Ela se banhava em suas lágrimas, em seu suor, em seu odor, no terror daquilo que se tornou, esperando inutilmente que alguém a viesse salvar e mudar sua realidade.

A caminhante, mesmo ofegante e exausta de suas andanças, firmou o passo e seguiu um pouco mais.

Tal como artista que se joga, ousou se equilibrar na corda bamba, de um fio de esperança, aguardando que do lodo de seu caos algo bom pudesse emergir. O alimento que a supria, era feito de gotas de coragem, provindas de seu interior, e com isto foi se recompondo, renascendo e se resgatando.

Certo dia, num lapso de sabedoria e desespero a mulher se lançou no abismo, se despojou de sua antiga roupagem. Tal como a cascavel que se refaz trocando a pele que outrora a encobria, ou como a borboleta que se esfola, fere e contorce ao sair do casulo. Neste salto de confiança a mulher gerou novas mãos e asas, novos eus, novos olhares. De um novo sempre antigo, um antigo renovado, a selvagem original.

A mulher que abrigava dentro de si a fera instintiva, força genuína e a brisa suave da intuição, despertou de seu sono mórbido e profundo. Livre da cegueira de outrora, vislumbrou novos horizontes, e novas percepções. Entusiasmada, ela pegou a pena em suas mãos, e como autora e protagonista, escreveu a própria história.

Ana Lu Portes

Ana Lú Portes
Enviado por Ana Lú Portes em 06/12/2022
Reeditado em 17/06/2024
Código do texto: T7666196
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