Efeito sanfona
Além de nunca ter tido
bicicleta ou videogame
muitas vezes faltou o pão,
a manteiga e um mísero tênis
teve álcool, pancadaria
hematoma tatuado no corpo
indiferença pintada na alma
e como amigo, cemitério e corvo
além do gosto do não ter
os desejos lambiam os dedos
os sonhos ardiam por dentro
memórias frias e o desrespeito
além de nunca ter tido
bola de capotão ou skate
sentiu o peso do mundo
escorrer pelo peito quente
a cinta cortando o lombo
antes do eu te amo
ante os sentimentos abstratos
diante do medo e de todo o pranto
quando ganhou brinquedo
sorriu incrédulo por fora
acreditou mais em deus
e no milagre da retórica
hoje, homem feito
a exigência é por amor próprio
brilho nos olhos
e muito suor pra subir ao pódio
a mesma sociedade que apaga
oferece a rampa pro futuro
escada feita de crânios e ossos
paraíso escuro cheio de musgo
neste cenário é louco o bagulho
tudo é bangue bangue
é tiro de doze
é sangue por sangue
falta olho no olho
sobra dente por dente
tira que atira
na cara dos cria
e mata gente inocente
gente como a gente
que não gosta de elogio
sempre fala por metáfora
prefere a contemplação
da curva de um rio
e folhas amazônicas
em decomposição botânica
gente como a gente
que odeia gente escandalosa
espanta qualquer toque
e desconfia de riso alto
daqueles que espremem o olho
e deixam terra e céus sombrios
gente como a gente
que incomoda quase nada
desassossega ombro amigo
em dia de comemorar
alguma nova rima
pra uma poesia aposentada
gente como a gente
que nunca mente de verdade
sempre mostra o que sente
e vez por outra se entende
como gente que desmente
o riso da própria mente
gente como a gente
que é fã do seu Brasil
país do futebol, caipora
de gente rica, branca e fedida
que sonha em ir embora
por causa de gente
como a gente.