Pequenas histórias 282
Não sei escrever
Não sei escrever.
Não tenho o domínio da palavra.
Mesmo assim escrevo.
Escrevo no passeio da avenida em plenas oito horas de quinta-feira.
(Oba! Até que enfim amanhã é sexta-feira!)
Escrevo no delírio dos passos despreocupados.
Nos passos cansados nas pastilhas do calçamento antigo que rodeia o Conjunto Nacional.
Nos olhos sonolentos de vidas antigas futuras e passadas de vidas tão somente vidas vivendo vidas hoje.
Alonga-se a avenida na perspectiva do olho ao atravessá-la.
Alonga-se nas buzinas dos semáforos luminosos das propagandas televisivas e jornalísticas estampando sorrisos e saúdes falsas.
Escrevo na leitura de poemas ao balanço do ônibus dobrando e virando destinos que acordam em seus pontos de chegadas.
Escrevo no alongado do sentir alheio que me olha sem me ver.
Vejo olhares dispersivos em preocupações medrosas e às vezes audaciosas ao piscar do olho maroto sexualmente falando.
Escrevo no pensamento captando símbolos e formas esparramadas pelas bancas de jornal a procura de novidade.
Novidade que não há no surgimento do dia-a-dia escondida nas entrelinhas da carne cinzenta de concreto e paz longínqua.
Na multidão a espera que Moisés moderno impregnado de vermelho abra as águas do mar para que possam atravessar.
Escrevo no sangue líquido de uma faca sangrando os ossos fracos da vitima.
No liquido amarelo de euforia em diversos bares desfrutando ao longo da avenida sorrisos e alegrias embebidas em solidão.
Nas arcadas literárias dos casarões de Rosas e Itaú transbordando filosofia para o gáudio dos Campos de Rosas.
Nos brilhos musicais a ornamentar os alicerces bancários com taxas e juros.
Escrevo na sombra das árvores do Trianon ocultando movimentos e segredos que as folhas temerosas abrigam.
No solene triunfo à arte aonde o vão das probabilidades propicia ensejos de encontros e desencontros.
Nas estações Consolação, Brigadeiro, Trianon e Paraíso na loucura de ir e vir à procura do perdido.
Nos restaurantes e lanchonetes de refeições vazias de alimento apressado pelo servir a fome dos escriturários, executivos e peões.
Nas rampas do Conjunto Nacional, marco que se transforma em marketing de tele Mark desenfreado.
Escrevo no olho do cão cuidando do dono em seu sono de mendicância despreocupado com crise e consumismo.
Com a caneta de aço escrevo nos membros amputados da cancerosa violentando os olhos de caridade.
Nos michês alugueis de corpos abrandando anseios nos segredos da carne vendida.
Nas manifestações políticas no arco íris do amor sem preconceito de expor.
Nesse escrever, guardo todos os sentires num só ao mesmo tempo sou o tudo que vejo.
Nesse escrever contabilizo minhas perdas e ganhos no meu Livro de cabeceira o qual só eu tenho a chave do seu segredo.