CALADINHO, MENINO!

Caladinho, menino!

Silêncio forçado

Mas nem tanto silêncio assim

Silêncio da vida escorrida

como macarrão branco

A fala da avó Cora

ela gosta do silêncio

mas mistura com a fala

o avô fala e pede silêncio

não gosta de algazarra

mas gosta dos meninos

de coração e broa assada

Êia, Dico Ferreira!

Engraçado como criamos raízes

Ser humano-árvore enraizado nas eras

Enraizado no bairro

no barro

depois no asfalto

e depois mais asfalto

asfalto paralelo

mono-asfalto que matou muita gente

traumatismos

crânios

visão de interrupção de vida

espalhados mentalmente no asfalto preto

asfalto vermelho

asfalto cinza de cimento e corpos semeados no cimento cinza

de novo interrupção de vida

e muita gente que se vai no asfalto

basta

A rua ferro velho ficou marcada feito ferrugem na memória de aço

os carros

as peças

brinquedos

Bazola

Na rua ferro velho pousa um alienígena vermelho

de Marte

O barro vermelho vira uma cabeça

"Olha tio Paulo, um marciano!"

Como o menino sabia que era de Marte, se nem Marte ele sabia que existia?

A mente prega uma peça

Fica na mente da gente

as memórias boas e ruins

A lembrança mais remota:

drops KIDS de café e menta no Bezinho

Bicicleta Wolksvagen

Almoço na casa do Agrimar

Molho de pimenta Cica

A rapa do arroz da Léia

Maçã de peito assada

Correria

pique-esconde

cabeça de nego explode

quase o menino entra na chibata

Mas Ti'Belo espirra uns traques e tudo volta à normalidade na bodega da Dôdora

E as lembranças chegando num turbilhão de saudades

A broa confeitada da Fátima,

motivo do menino tomar uma bela Surra

O Ray-Ban do Assis

Calça, camisa e cueca

As chaves que não ligavam carro nenhum,

só O SP-2

Oratório de madeira

Sino de bronze quebrado

A novidade da TV colorida

Agnaldo...nunca mais o menino provou uma cana caiana tão doce, foi-se o tempo e é só saudade

saudade doce que dói

Agnair, bela Índia Agnair

encostada no toco do pasto

e o roubo de alma na foto em preto e branco

O pai chegando com uniforme azul, inoxidável, trazendo o lanche do menino

Na casa da frente

e entre a casa do fundo

O quintal era o mundo do menino

fim de semana era dos meninos

a noite era dos meninos

a varanda de ardósia verde

"Caladinho, menino!

Dorme...

O sono não tem

O sonho não vêm

Na vida que tem

O sonho chegou despertando do sono

Trazendo a sensação que não devia sonhar, só viver o dia de ontem

Mas o ontem passou e a vontade não dá pra voltar atrás

só pra frente

Então a saudade aperta o peito do menino e ele chora

tem que dar uma pausa na história...

Êta saudades da batata doce assada

da broa de melado que comia até enjoar

da banana-maçã malhada

do macarrão da avó

"Vó, como é que faz?"

E essa foi a primeira receita do menino

Ele só nao aprendeu como voltar atrás...

Então o menino chora de saudade...

17/05/2022

15:56hrs

Selton A Jhonn s
Enviado por Selton A Jhonn s em 18/05/2022
Reeditado em 18/05/2022
Código do texto: T7518633
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