O MULO

O mulo troteia a senda

Arrasta consigo a carga

Leva na cacunda o peso de um morto

Leve pra ele

Mas pesado demais pra suportar

Parece não se importar

Mastiga saliva

Troteia devagar na sua pressa

Mastiga sua vida na própria boca

Inflige a marcha

Troteia o mulo

Ferro raspa a pedra

Pedra desgasta o ferro

Freio aperta

Não tem dono o mulo

"Sai, moleque!"

"Sai, capeta!"

"Vai atazanar sua mãe!"

Coitada...

De atazanada já basta a vida

Surra a roupa na penha

Enquanto o sabão derrete no rio

Rio seco

Rio sem rio

Rio com rio molhado

Vidas secas e esturricadas

Precisa de água

Higroscópico

Hidrófilo

Porém falta algo

Falta água

Desidratado

Falta tudo

Falta vontade de tomar estrada

"Toma água, menino!"

"Toma tudo!"

Tudo é nada

Olha ao lado

O mulo com sede toma água

Espanta a mosca

Balança a crina

Aceita a sina

Aceita o cincerro no pescoço

Toma tudo

Toma o mundo

Olha pra mim

Olhar vazio

Esperando alguma coisa

Não vem alguma coisa

Alguma coisa não existe

O mulo vai embora

Troteia

Arrasta

A vida amarrada numa corda

Arrastada pelo mulo

Arrastada pelo mundo

Ele não sabe

Nem sabe que é o mulo

Mas troteia

E vai pela estrada afora

Mastiga a vida

Mastiga tudo

Tudo lhe falta

"Vida arrastada, meu Deus!"

Vida triturada

Igual o milho

Vida torturada

Igual o mulo

"Ô mulo besta!"

Literalmente

Figuradamente

Animalescamente

Troteia

Empurra

Arrasta

Pára

Ele anda devagar

O mulo

O mulo quase

O mulo então

O mulo emula

Se finge de vida

Se finge de mim

Se finge de égua

Mastigo a vida

Triturada

Torturada

Eu então

Emulo.

12/05/2022

07:00hrs

Selton A Jhonn s
Enviado por Selton A Jhonn s em 12/05/2022
Reeditado em 12/05/2022
Código do texto: T7514525
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