Cassiano Ricardo
Biografia
Cassiano Ricardo Leite (São José dos Campos, São Paulo, 1895 - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1974). Poeta, ensaísta e jornalista. Passa a infância na pequena propriedade rural da família, realizando os estudos primários em sua cidade natal, e o ginásio, em Jacareí, São Paulo. Por influência da mãe, escreve seus primeiros versos ainda na escola. Passa a viver na capital paulista em 1915, quando ingressa na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, mas conclui o curso de direito no Rio de Janeiro. Estreia em livro em 1915, com os poemas de Dentro da Noite, e, em 1917, lança A Frauta de Pã. Este recebe elogios dos parnasianos Olavo Bilac (1865 - 1918) e Alberto de Oliveira (1857 - 1937). Atua como advogado inicialmente em São Paulo, e depois no Rio Grande do Sul, de 1920 a 1923. De volta à capital paulista, integra o grupo dissidente da Semana de Arte Moderna, organizando os grupos Anta e Verde-Amarelo, com os escritores Menotti del Picchia (1892 - 1988), Plínio Salgado (1895 - 1975) e Raul Bopp (1898 - 1984). O nacionalismo dessa fase tem seu ápice nos poemas de Martim Cererê (1928). Ricardo abandona a advocacia e entra para o funcionalismo público, ocupando cargos diversos: inicialmente o de censor, e, em 1932, o de secretário do interventor paulista Pedro de Toledo, sendo preso por dois meses por apoiar a Revolução Constitucionalista. É eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1937. Dirige, de 1940 a 1945, o órgão oficial A Manhã, em que cria o suplemento Autores e Livros e partir do qual se torna um dos principais ideólogos do Estado Novo. Conforme o ensaio Marcha para o Oeste, de 1940, suas ideias ultranacionalistas apostam na figura do bandeirante como introdutora do sentimento nacional e representante da possibilidade de ascensão social. Em 1943, após 12 anos de silêncio poético, lança O Sangue das Horas, considerado o início de sua terceira fase, metafísica. De 1953 a 1955, permanece na Europa, como diretor do Escritório Comercial brasileiro em Paris. Publica, em 1964, Jeremias Sem-Chorar e, em 1971, Os Sobreviventes, incorporando procedimentos da vanguarda concretista.
Análise
A longa e produtiva carreira poética de Cassiano Ricardo - 19 títulos inéditos entre 1915 e 1971 - reflete a história da literatura de seu tempo: tendo se lançado com versos de fundo parnasiano, cultiva o modernismo verde-amarelo, a partir de 1926, passando a um lirismo reflexivo, no fim dos anos 1940, e à proximidade com as experiências de vanguarda, na década de 1960. Entretanto, a despeito do que possa sugerir a identificação de fases em sua trajetória, essa obra apresenta intensa unidade, no que diz respeito tanto aos temas aos quais se dedica o poeta quanto à ideologia que define o posicionamento do autor.
A comparação entre três poemas de temática semelhante ilustra a evolução sem rupturas de Cassiano Ricardo. O soneto Marcha Fúnebre, de Dentro da Noite (1915), livro de estreia, retrata um eu lírico que, ao ouvir a melodia lúgubre, passa a se questionar a respeito da passagem do tempo. A interrogação surge, conforme narrado, na segunda quadra: "A saudade, a amargura, a dúvida, a agonia / irrompem dentro em mim, num brusco desenlace, / e entre a dor que me fere e o som que me extasia / uma ideia, em meu ser contraditório, nasce", e leva o sujeito a concluir, no verso final: "Lá vou eu conduzindo o enterro de mim mesmo". O trecho evidencia a proximidade com a dicção parnasiana, com base em elementos como a sintaxe rigorosa, o vocabulário culto, a nomeação dos quatro sentimentos no primeiro verso e a autonomia conferida a uma "ideia" que "nasce" no "ser".
Já em Percurso, de Jeremias Sem-Chorar (1964), o poeta retoma a mesma preocupação, mas com significativas diferenças estéticas: "Mas o tempo / ponte que cresceu / entre mim e eu. / E por onde vim. // No enterro / de cada minuto, / pergunto: / quem morreu / em mim?". A metáfora do enterro que encerra o soneto de 1915 torna-se mais concisa, intensificando a tópica da passagem do tempo. Os versos dodecassílabos dão lugar aos livres, de ritmo leve e ligeiro. Já não há, ademais, o encerramento do conflito em uma metáfora, permanecendo a suspensão.
Entre um e outro, há também os versos longos, porém livres, deste poema de João Torto e a Fábula (1956): "Um dia conversarei com os meus mortos / E todos os que morri (os muitos eus que fui) / reunidos inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão / me contarão (sua) a minha história". No excerto, o retrato da fragmentação do eu traz ainda a elevação conferida à problemática existencial.
O recurso adotado no soneto Marcha Fúnebre, de 1915, retorna em Café Expresso, um dos mais conhecidos poemas de Martim Cererê (1928), livro considerado o ápice da fase modernista de Ricardo. Também aqui um elemento sensitivo desperta o insight no sujeito poético: "A minha xícara de café / é o resumo de todas as coisas que vi na fazendo e me vêm à memória apagada". Neste caso, porém, trata-se de um produto nacional - o café -, e o foco não está apenas na passagem do tempo, mas no contraponto entre o homem adulto, habitante de uma São Paulo acelerada e industrializada, e o menino crescido no campo.
De acordo com Luiza Franco Moreira, a relação entre presente urbano e passado rural está no centro da estrutura do livro de 1928, compondo o "emparelhamento contraditório de menino e adulto" que exprime a tese política do autor. Pois o mito da identidade brasileira criado em Martim Cererê conjuga episódios históricos e elementos do folclore em uma construção que, equiparando as expedições bandeirantes ao ciclo de exploração do café, coloca a metrópole paulista como o destino da nação - de maneira a subordinar toda a população à pequena parcela privilegiada da cidade. O menino Martim Cererê, saci oferecido como alegoria do Brasil, revela, nesse sentido, a inclinação paternalista e autoritária da obra: o país, como menino ao mesmo tempo encantador e imaturo, mereceria afeto e careceria de orientação.
A mesma tese, embora em chave não literária, é o fundamento do ensaio Marcha para o Oeste (1940), em que a visão positiva sobre a miscigenação se soma à crença no pioneirismo das bandeiras, resultando na "concepção do estado forte como fruto de nossa evolução histórica", conforme afirma Antonio Candido (1918). A preocupação com um programa essencialmente nacional é patente também nos ensaios sobre literatura escritos por Cassiano Ricardo. A defesa de uma postura participativa por parte do intelectual formula-se, nesses textos, como uma busca pelo que há de propriamente brasileiro.
Não à toa, Martim Cererê é adotado em escolas, e Cassiano Ricardo aproxima-se do Estado Novo, servindo ao projeto de Getúlio Vargas. Por essa razão e a despeito das composições em que demonstra perfeita consciência dos recursos poéticos, "para o [seu] público contemporâneo, Cassiano é o poeta de Martim Cererê; para os críticos, um escritor modernista de importância histórica, e para os historiadores, um ideólogo estado-novista", segundo resume Moreira.
Cassiano Ricardo: O relógio
A consciência da passagem do tempo se fez presente nos versos de Cassiano Ricardo ao longo de todas as estéticas atravessadas pelo poeta. No parnasiano livro de estreia, Dentro da Noite, de 1915, já escrevia no soneto Marcha Fúnebre: “lá vou eu conduzindo o enterro de mim mesmo”. Quando adotou o nacionalismo verde-amarelo de sua obra mais conhecida, Martim Cererê, em 1928, citou “a memória apagada”. O tema reapareceu em 1947 no título de um livro de transição, Um Dia Depois do Outro. E as poesias vanguardistas de obras como João Torto e a Fábula, de 1956, ou Montanha Russa e A Difícil Manhã (ambos de 1960) não fugiram ao enigma da passagem do tempo. Já lemos aqui um dos poemas lançados em 1960, Depois de Tudo, e agora ouviremos versos da coletânea de 1947, Um Dia Depois do Outro. O título é significativo, pois Cassiano Ricardo deu à poesia o nome de O relógio.
Cassiano Ricardo
O relógio
Diante de coisa tão doída
Conservemo-nos serenos
Cada minuto da vida
Nunca é mais, é sempre menos
Ser é apenas uma face
Do não ser, e não do ser
Desde o instante em que se nasce
Já se começa a morrer.
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