Tarde nublada

Tenho acordado tarde nas últimas semanas.

Me permito esse pequeno prazer,

já que há um bom tempo o mundo caminha

em um estado de sucção interminável.

Me permito esse pequeno prazer

porque assim a vida torna-se mais calma

e aprazível.

Gosto de experimentar a sensação:

passa da meia-noite, a maioria das pessoas foram dormir,

mas eu, ainda sem sono, continuo acordado.

Pensando. Lendo. Assistindo. Escrevendo.

Sempre fui uma pessoa noturna,

de má iluminação, escondendo-me nas sombras

das cortinas e

permitindo que ocasionalmente

um feixe de luz irrompa o território recluso

para nivelar os tons dualísticos que quando

precisam de luz não recusam visitas.

Para falar a verdade, a sensação mais apaziguadora

de ir dormir quando já se devia estar acordando é poder

seguir seu próprio horário biológico sem a obrigação

de cumprir metas impostas pela sociedade do cansaço –

viver às avessas, caso assim o corpo queira.

Hoje abri os olhos

e já passava de uma da tarde.

Frio lá fora, mas aqui dentro, apenas um pouco.

Me agrado com esse clima.

Certamente um daqueles dias feitos para

nos enrolarmos na cama feito panquecas quentes.

Levantei, vesti uma blusa de frio,

fui até a cozinha, me sentei e fiquei lendo

Carlos Drummond de Andrade.

O sentimento que predomina hoje, ou pelo menos

até agora, é de indiferença, mas com uma sutil inclinação

voltada para a curiosidade. Não sei de quê.

Hoje é sexta-feira, encontrarei alguns amigos.

Costumo me alegrar com eles,

mas às vezes fico extremamente cansado de falar

qualquer coisa, gesticular, rir de piadas

que não acho engraçadas. Calo-me e estranho-me

com o borbulho de gotículas planando ao fronte.

Tudo que não digo para eles

ou para qualquer pessoa vai sendo guardado

em um cofre mental que cedo ou tarde é aberto,

ordenado e distribuído em extensas fileiras de palavras

frutificando a terra dos pensamentos.

Não pensem que o problema é com vocês.

Não pensem nem ao menos que isso seja um problema de fato.

É só gastura de uma folha de papel atravessada o ar insólito.

Não sei qual é a resposta da minha pergunta

ainda não formulada,

mas espero encontrá-la depois,

talvez quando eu sair, talvez quando eu não dormir.