O dizer das cores
As cores têm força
Representam, falam, discursam
Revelam, apontam caminhos, enganam, dialogam
Conduzem, brigam, gritam, calam
Gargalham e choram
Ora escamoteando o eu recôndito
de quem lhes toma de empréstimo
Ora expressando fielmente o eu
que não se contém em si
e esbraveja para falar
Dizem do escondido
Conversam com o perdido
Reafirmam o revelado
Expressam uma disposição
Ou mesmo uma condição
Nunca deixam de falar
Clarear ou obnubilar
A canção lembra de Almodóvar e Kahlo
Da intensidade e vivacidade de ambos
Lembro da opacidade de Kafka e Camus
e do colorido melancólico de Munch
Num dia, o vigor da luz
No outro, a neblina
Cores de verão, cores de inverno
Uns de acordo com a estação
Outros com o coração
Alguns alheios e cheios de medo
de vestirem-se com a inobservável resignação
Cores sensatas e despropositadas
Comedidas e extravagantes
Conservadoras e revolucionárias
Umas sangram e outras serenam
Abrem e fecham
A vida, o horizonte e o sentido
A linguagem das cores é a mais potente
Quem é o texto escrito para falar mais que o sujar de tinta do papel?!
Não há poema que suplante um borrão rubro em seu corpo!
E o que dizer então da força sedutora da palavra falada?
Toda carga emotiva da palavra falada sucumbe ao reluzir ou escurecer...
As cores fazem o que querem com as palavras
Dinamitam ou resplandecem
ao alvedrio da intensidade e iluminação
E ainda assim não nos privam de enganos...
Na verdade, às vezes, as cores nos induzem ao absurdo
Outro dia mesmo apaixonei-me com o contraste entre uma calça branca de listras azuis
e a blusa vermelha da garota do supermercado
Aquelas cores me diziam tanto!
Chacoalharam-me.
Não titubeei.
Acelerei o passo para propô-la a eternidade
Ela aceitou e veio o desencanto
Alma monocromática.
Noutra ocasião o clarear do dia invadiu-me de tal modo
Que quis pular da sacada do sétimo andar
Não buscando o fim
Mas por acreditar que tinha asas.