PAIXÃO DE VIVER
Saio de casa e grito: liberdade!
Ouço pássaros cantarolando dentro de gaiolas,
vejo o papagaio enroscado no fio, sem rabiola,
vejo a avó sentindo dó do menino neutro, órfão,
pendurado no ônibus, indo a lugar nenhum,
a menina na padaria a servir o pão de cada dia,
o guarda que guarda o preso que lhe prende,
até o padre dando o mesmo sermão em toda missa
como se aprender algo novo lhe desse preguiça,
as nuvens que, se não são as mesmas, da mesma água são,
recolhem o choro quente da terra e lhe devolve em gotas-grão,
o violinista a ensaiar o mesmo Beethoven, a Nona, a nona, a Nona,
a garota que ensaia no palco da vida até se tornar outra Madonna,
distintos senhores eleitos a roubarem a mesma grana, todo dia,
como se fossem vendilhões cantadores, sempre na mesma melodia,
alguém fala de amor e repete a parte pior desse sentimento,
ofende, bate, fere, rasga, estllhaça o mesmo amor por dentro,
ouço a carne oferecendo, na esquina, sua multidão de orgasmos,
homens fracos a mastigarem a mesma carne, tronco, seios, braços,
escuto o pio da ave escondida na cumeeira, assustada,
se lhe digo algo, medo de mim tem, então lhe digo nada,
escuto os pavios acesos das bombas que irão cair
sobre quintais e pomares e manguezais e florescências,
não escuto nenhum cientista gritar, nem em nome da ciência,
só o medo assistindo televisão, de pantufas, embriagado,
a rir do medo de quem tem medo de se tornar vil soldado,
estendo um tapete de água para os peixes passarem, incólumes,
abro a rede para dormir o sol cansado de se expor em raios,
afofo o travesseiro para a cabeça cansada de quem pensa a paz,
escrevo o poema com uma ponta de soluço em cada palavra,
espalho meu amor, todo vivo, em cada poesia traçada,
fecho este com o selo duradouro da paixão,
a mesma que vive e mora em meu coração...