medo

medo

medo da imensidão do mundo e da vida

que os braços abertos não logram alcançar

e o recém-nascido, então, rebenta a chorar

medo da dor da carne

e o pior, da dor do cerne

aquele ser imaterial que habita o corpo

que padece de indizíveis sofrimentos

medo da reprovação

medo sem razão, pois todos deveríamos saber

que nosso condão é único, imprescindível

pudéssemos todos nos reconhecer

medo da solidão

mas que medo inesperado!

pois ao longo da vida deveríamos ter aprendido

a sermos nós mesmos

nossos mais assíduos e fiéis amigos e companheiros

medo do desconhecido

embora quase sempre, veja bem, quase

descobrimos que depois de conhecido

o outrora assustador nos engrandece

medo da escuridão

que nos apaga os limites que separam

os horrores que espreitam escondidos nas trevas

daqueles que trazemos dentro de nós

medo da loucura

que nos revela, sem que tenhamos perguntado

que nossas certezas são todas incertas

medo da fera selvagem

dissimulada no emaranhado de nossa civilidade

ela paciente espreita a desatenção humana

pra atiçar entre irmãos a cizânia

medo do sobrenatural

tudo aquilo que ainda não sabemos explicar e domar

e que arranca o terror que trazemos dentro

de nosso inconsciente de milênios de medos

medo da morte

que nos escancara que nem tudo podemos prever

o que nos assusta é a inexorável interrogação

do que virá depois, será o fim, sem nenhum perdão?

medo da insignificância

de enxergar-se invisível, descartável

a ponto de bastar então inventar

fingir ser qualquer coisa, ainda que lamentável

medo da rejeição

da paixão, do filho, o irmão

não há sucedâneo que supra o vazio

que fica no peito baldio

medo da doença

que lenta nos esvai a vitalidade

impotentes, então

desposamos qualquer crença

medo da velhice

ela que deveria ser uma amiga sapiente

mas que amiúde revela-se

uma impiedosa e rancorosa demente

o insólito medo da felicidade

que vem e vai fugidia como o riso

que parecemos tanto penar para alcançar

e vem-nos então o temor de perdê-la

sem nem bem ter atinado como dela desfrutar

medo de errar

que revela que ainda não acertamos entender

que é com os erros que cometemos, e corrigimos,

que mais prosperamos no que ainda a aprender

medo do próprio rabo

que assusta a dócil e medrosa cachorra da família

a balançar, insubmisso, de afeição

festejando os humanos de sua matilha

ao fazer inesperado ruído batendo no armário

medo da coragem

e de tudo que com lutas possamos conquistar

e depois venhamos a consumir nossa existência

a defender daqueles que nos querem tirar

medo da liberdade

ela nos opõe a toda a submissão

que se verga à imposição dos costumes e dos ditames

e nos empurra à linha de frente da batalha

árdua, mas jubilosa, da emancipação

medo da mudança

ela é tudo aquilo que ainda não vivenciamos

o teimoso desafio de nos transformarmos

implacável desígnio natural da evolução

medo da lucidez

ela nos revela o ócio de viver à sombra

e o estorvo de nos expor à luz

que denuncia toda loucura e ferocidade humana

medo do amor

amar é querer

e o querer é atrelado à aflição de ter

e depois perder

medo da opinião

somos hipócritas, orgulhosos e lenientes

ainda cremos que duas visões diferentes

sejam antagônicas e excludentes

não construímos com elas a melhor terceira opção

medo da identidade

somos todos únicos

mas respeitar e expor nossa singularidade

contrapõe-nos à massa disforme e tangida

que prefere renunciar e nos clichês ser diluída

medo da sobriedade

que nos aconselha o mesmo despojamento da natureza

mas nossa insaciável cupidez

faz-nos sempre mais desejosos e cobiçosos

medo da paz

aqueles homens

a quem não é dado perceber e sentir

as bênçãos da mulher, de acolher, criar e cuidar

ficam desorientados do que fazer

quando não estão a guerrear

ainda o medo reiterado da paz

parecemos temê-la mais que a beligerância

cremos que a guerra salva a economia

e dá razão de viver aos homens sem porvir

medo da justiça

ela pressupõe direitos e deveres iguais para todos

mas sempre supomos ter direito a mil perdões

de nossas inevitáveis más inclinações

medo do medo

ele que nos nutre o medo

de enfrentar todos os medos

medo do senão

se não fosse aquele desencontro

se não fosse aquela derrota

se não fosse aquele medo

medo do vírus, invisível

que além de letal

separa-nos, entre o bem e o mal

medo do escárnio

que nos trespassa o brio

qual um insolente aço frio

medo do comunismo

horror igual ao da cuca que vem nos pegar

nefastas crias da malícia humana

destinadas a nos amedrontar

medo de nos faltar

o alimento, a amizade, a família, a paz, o lar

faltas que cultivamos com nossa vil atitude

pudera nossas ideias e atos fossem de plenitude

medo de escutar

que nos compele a, surdos,

só querermos falar

a babélica fala dos estranhos

que mais nada têm a compartilhar

medo dos pobres e analfabetos

suposta gentalha desqualificada

que inadvertidamente, subitamente

pode mostrar-nos quem são de fato,

mais ricos e sábios

que nossa presunção de nós mesmos