Havia um fiapo em minha calça.
E eu nunca tinha o visto.
Não sei sua idade, sua causa
Se chamava mais atenção do que o cinto
Ou o resto dos adornos.
Puxei, então, o fiapo.
Mas isto apenas o fez maior.
Tentei com uma tesoura, e consegui
Retirar aquele pedaço de costura.
Joguei ao chão para ser varrido
Junto com o resto das outras coisas
Que se desfazem aos poucos
Em pequenas partículas de poeira.
Mas os gatos o acharam antes do aspirador,
E viam naquilo a diversão perfeita.
Corriam para lá com o fiapo
O rebatiam de volta para seu lugar
O carregavam na boca como se fosse uma caça;
Brigavam pelo direito de o caçar.
Numa dessas disputas,
Uma unhada bruta gerou uma confusão
Que por sua vez gerou um problema:
Um vaso foi derrubado, um móvel arranhado
E com meus gritos, os gatos saíam de cena.
Peguei a planta nas mãos, que morria a cada segundo
Que suas raízes se ausentavam da terra.
Fiz o melhor arranjo que pude
Coloquei-a num lugar seguro
E saí em busca de um receptáculo
Que pudesse sustentar sua vida.
Havia um acidente na via,
Cujo fiquei feliz por não participar
Mas triste por não ver acontecer.
Tão entretido com a catástrofe dos outros
Quase não tive tempo de reagir
E desviar do carro que freava bruscamente.
Mudei de faixa, olhei para trás pelo retrovisor
E antes que pudesse proferir qualquer palavra de baixo calão,
Bati o carro na guia,
A cabeça no volante,
As pernas no painel,
Num momento arrepiante
Onde o carro avança o barranco
E cai num buraco mais adiante
Dando fim ao desespero
E às minhas lembranças.
Acordei alguns dias depois
Com todos que eu conheço do meu lado
Choravam pela minha condição,
Rezavam e levantavam as mãos,
Pedindo que eu acordasse logo.
Mas eu estava ali. Eu via tudo.
Mas não falava nada. Não conseguia.
Estava preso em minha mente
Em minha sina.
Os anos passaram,
As pessoas minguaram
E eu permaneci.
Não sentia as pernas, os braços
Não havia mais velas
Porque para elas, não tinha mais espaço
O tempo do milagre ficou no passado
Assim como eu.
Soube da morte dos gatos pelos meus pais,
A morte dos meus pais pela minha esposa,
A morte de minha esposa pelos amigos,
E a morte destes quando me vi, enfim, sozinho.
As enfermeiras não eram mais as mesmas,
Assim como os médicos e outros doentes
Que dividiam o quarto comigo.
Ouvia suas famílias em visita,
Suas histórias esquisitas
Que me davam coisas com que sonhar.
Até que fui movido, levado para outro lugar
Um quarto de outros tantos como eu
Presos no limiar
Entre uma vida perfeitamente normal
E o eterno adormecer;
Que ninguém mais visitava,
A não ser para conferir,
Se a cama já estava vaga,
Ou se ainda continuava a existir.
A única comemoração que escutei
Foram das enfermeiras cansadas,
Que ganharam a aposta
Quando acordei.
Médicos emburrados entravam no quarto,
Checando minhas retinas com luz clara
Mas não o suficiente para esconder no canto da sala
Enfermeiras contando o quanto faturaram.
Tive alta no mesmo dia,
Enquanto via minha cama arrumada
Pronta para receber outro quase defunto,
Que já estava dando entrada.
Olhei-me no reflexo dos espelhos
De lojas que eu nunca tinha ouvido falar.
Um idoso frágil, confuso, num mundo que não era seu
Que tremia de tanto chorar.
Diziam os clientes da loja que o pobre senhor não batia bem
E que já parecia prestes a morrer antes de ali entrar.
Que olhava no espelho e parecia não acreditar;
Como se esperasse ver outra imagem ali.
Que tudo que já estava mal, começou a piorar
Quando viu um fiapo em sua calça
E começou a puxar e puxar
Chorar e puxar, tremer e chorar
Até cair no chão
E ali ficar.