Cego
Tateio seu rosto na minha mente,
sinto na ponta dos dedos a textura,
percorro o contorno com interesse,
há alguma forma geométrica ali,
desenhos que se alinham delicados,
sinto tremor e respiração acelerada.
Minha ou sua? Ainda não sei responder.
Há um sorriso em seus lábios tensos?
eles se contraem e se mordiscam,
uma beleza em não ver e só imaginar,
olhos julgam e condenam quando veem,
o que o coração enxerga permanece,
seria tão simples sermos todos cegos,
seríamos tão simples e humildes,
a estética seria a do toque sensível,
delinear contornos e formas na intuição,
poesia mental imiscuída ao sentimento,
velejar na sua pele em um lago sem ondas,
haveria lágrimas em alguns tormentos,
o sabor agridoce de vidas acontecendo,
sorvidas por poros que absorvem gotas,
tempestades e calmarias emocionadas,
caminho de sentidos e significados,
revelando ou ocultando expressões,
meus olhos não se preocupam em ver,
minha alma encontra o que é necessário,
a futilidade de Narciso se esvai na cegueira,
a planta que dá frutos e semeia a criatividade,
belezas que configuram uma obra de arte,
sem visão sou livre para sentir a imensidão,
minhas impressões digitais ficam oleosas,
sorrio com o canto dos lábios: Ah, é isso!
A ponta dos dedos mensura seu calor,
há tantas sensações sendo descobertas,
um mapa sem destino, um destino sem mapa,
escrevendo juntos esse roteiro indefinido,
deixando a ausência preencher o que não é visto,
vazios transparentes de formas acrílicas,
água em fonte cristalina jorrando do interior,
permitindo aos sonhos irrigarem solos áridos,
desabrochando sementes em lírios do campo,
tateio cegamente uma tela em branco,
na escuridão de um dia totalmente claro,
não preciso de uma retina para compreender,
foco na essência que confere a conexão,
porque tanto faz se és ou não és uma imagem,
uma persona ou uma fantasia, um corpo ou puro ar,
um fantasma ou simples bruma, uma máscara ou nada,
nunca houve fragmentos sem um inteiro anterior,
cada pedacinho desse quebra-cabeças é uma tela total,
a completude é feita de pedaços da jornada individual,
singulares e plurais, substantivos comuns e compostos,
mistérios indecifráveis e soluções científicas laboratoriais,
meus olhos fechados percebem a fluência dos sons,
a movimentação do entorno, as ondas sonoras do vento,
odores e perfumes de chuva e pegadas em terra molhada,
cheiro adocicado da sua pele enebriando a paisagem,
nada faz mais sentido do que o que não se pode explicar,
nada é mais verdadeiro do que o que se escolhe sentir,
nenhuma verdade é absoluta, nenhuma mentira é infinita,
nenhum ser humano é inocente, nenhuma escolha é inócua,
não quero te ver, não quero saber se és ou não és nada,
cor, gênero, precisões na imprecisão, coerências na incoerência,
apenas confio no meu sentir, no meu instinto, no meu afeto...