Boca Miúda
Nos pés descalços, esparadrapos
Nas mãos calçadas, calos saltados
Dias a mais, horas extras, contadas
Nunca foi sorte ou exílio, só medo da morte.
Nas principais vias, revistas, coronhadas
Cansado da vida sofrida, palavrões, pedradas
Do vício, da dependência, do reduzido pó
Da impotente serviência, nova surra de cipó.
Desde cedo cabeça feita, no fio da navalha
Vida sem rumo, sem futuro, grande muralha
Atropelado pela insegurança, folgada mortalha
Nos becos escuros à pressa, abandonadas sandálias.
A cada esquina uma bocada, bloqueio, rua fechada.
Em boca miúda não entra formiga, melhor que continue calada.
A pobreza como herança, terrível, bastarda.
A chacina na lembrança, sensível, amputada.
No bolso uma bala, perdida, endereçada
No peito um cofre, arrombado, anônimo.
Vezes pedinte, vezes ambulante, transeunte
Outra vez mais no corre, busca vida, zumbi.
Com esse sobrenome comum, ordinário
Sou apenas mais um militante em jejum, obituário.
Quisera eu ter pena dos meus, de minha família
Quisera eu ter um lema, uma vida em sangue, sem hemofilia.
Hoje caminho para do amanhã escapar,
Sem saber se o destino irá me acordar.
A vida é dura parceiro, como asfalto queimado
E nas ruas de terra, finco meus joelhos ralados.
Agora outra vez penso, paro, reflito:
Se Jesus de fato está voltando,
Deve ter se perdido no caminho.