Boca Miúda

Nos pés descalços, esparadrapos

Nas mãos calçadas, calos saltados

Dias a mais, horas extras, contadas

Nunca foi sorte ou exílio, só medo da morte.

Nas principais vias, revistas, coronhadas

Cansado da vida sofrida, palavrões, pedradas

Do vício, da dependência, do reduzido pó

Da impotente serviência, nova surra de cipó.

Desde cedo cabeça feita, no fio da navalha

Vida sem rumo, sem futuro, grande muralha

Atropelado pela insegurança, folgada mortalha

Nos becos escuros à pressa, abandonadas sandálias.

A cada esquina uma bocada, bloqueio, rua fechada.

Em boca miúda não entra formiga, melhor que continue calada.

A pobreza como herança, terrível, bastarda.

A chacina na lembrança, sensível, amputada.

No bolso uma bala, perdida, endereçada

No peito um cofre, arrombado, anônimo.

Vezes pedinte, vezes ambulante, transeunte

Outra vez mais no corre, busca vida, zumbi.

Com esse sobrenome comum, ordinário

Sou apenas mais um militante em jejum, obituário.

Quisera eu ter pena dos meus, de minha família

Quisera eu ter um lema, uma vida em sangue, sem hemofilia.

Hoje caminho para do amanhã escapar,

Sem saber se o destino irá me acordar.

A vida é dura parceiro, como asfalto queimado

E nas ruas de terra, finco meus joelhos ralados.

Agora outra vez penso, paro, reflito:

Se Jesus de fato está voltando,

Deve ter se perdido no caminho.

Flavio Marcondes
Enviado por Flavio Marcondes em 08/04/2023
Reeditado em 08/04/2023
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