Retrato
Trato de arrumar a casa
Lavar a louça
De tratar a galinha do almoço
Botar o guisado no prato
Comer, cagar, digestão
Trato, ou tento, tratar bem as pessoas
Embora algumas sejam indigestas
(Diria que algumas são como carne de urubu)
Compro coisas do dia a dia
Gasto tempo com pornografia
E com coisas que não prestam
Cumpro tratados triviais
Mas esqueço dos emergenciais
Mais um dia se passa
Olho o retrato de quando era moço
Aquele rosto do passado
Aquele rosto do passado
Aquele rosto…
Certamente não sou eu
Não lembro de ser eu
Trato de arrumar a louça
Tratar a casa
Lavar a galinha
E já estou misturando tudo
Já estou esquecendo de mim
Já não lembro de ser
Estou vivendo, estou indo,
Estou indo, estou vivendo,
Digo, quando me perguntam
Como estou?
Ligo o autômato
Corto a tomate
Me corto
Escorre o sangue
Bato punheta quando tô triste
Não sei mais chorar
Sem a ajuda da cebola
Não sou eu naquele retrato
Não sou eu no espelho do meu quarto
Vou no mercado e me espanto:
Não tem nada para alimentar a fome da alma?
Esqueci de botar o lixo pra fora
Esqueci de botar pra fora o que sinto
Mais uma quarta, as horas crepitam,
Da janela do quarto, um pedaço de céu cinzento
Lá fora alguém usa as cinzas do cigarro pra dar um tiro na lata
Lá fora alguém pode ter levado um tiro ou um murro na cara
Alguma bomba estourando na faixa de gaza,
O Mercado roubando alguém,
Alguém prendendo gases,
Alguém pretendendo dar o rabo, outro querendo,
Morrendo, batendo o carro, triste, cantando,
Cagando… sendo máquina de carne.
No automático,
Vendo a vida passar,
Perdendo a direção
Indo pro buraco da existência
É não sei que horas de um dia abstrato
Peguei o retrato
Olhando bem,
Não há dúvidas de que aquele rosto alegre,
Olhar esperançoso, sorriso farto,
É de alguém que já foi (m)eu…
No passado.
E não gostou do presente…