Alegoria - Anatomia da vida
Tu quando chegastes, ruborizou o céu e constrangeu o vôo dos pássaros ao diluir-se na lascívia luz do poente.
És tu, vida, com tua silhueta nua e alheia a todas as formas prévias de ser. És tu que rompe as sombras do pudor e dança em volta das chamas vitais da existência.
Teus lábios são como veludo de sangue quente e pulsam a maciez agridoce de um abismo úmido. Tuas pétalas já dilatadas, desabrocham e atingem os céus entre rugidos.
Anuncia-te a noite, e ao vê-la, acendem-se os meus anseios tal como estrelas disparando uma rede de significados.
Ó vida noturna, vida que desvela-se dos trajes que a ocultam sob a luz do dia, vida que nasce da vergonha que ruboriza a covardia em nossas faces.
Sem fantasias ou trajes tu te tornas áspera, todavia, desfrutar-te em tua verdade, traz sobriedade a todas as experiências.
Em teus contornos, tudo se desprende em uma transparência frágil e sublime; tudo é claro e insuportavelmente possível.
Tu não te esforças, apenas é e não precisas de motivos, somos nós é quem a damos os motivos, por vezes reles, mas são trajes que abreviam as incertezas.
Ó vida, após vê-la nua, eu jamais poderei vivê-la de forma segura, jamais poderei entregá-la ao espaço das ideias vazias e compartilhadas ou mesmo vesti-la com roupas comuns.
Não deixarei que a toquem, pois em minha paixão egoísta, não vejo dignidade em compartilha-la, tampouco acharei quem a leia como eu.
Realizar-te é criá-la sabendo que uma hora ou outra serás condenada à fogueira, realizar-te é despossuir-te do que esperam de ti, para deixar que tu possuas a ti mesma.
Em tuas entranhas sempre existirá uma versão sua mais profunda do que a que eu vivo.
Vivê-la então, é deixar que crie sua própria antítese e se supere no próprio ato de viver.
Na dialética das forças expansivas, assistirei que te condenem a queimar em tuas próprias chamas.
Ó vida, já quis findar-te, e até coloquei-me contra a tua corporeidade, mas ressentir-te nada trouxe, exceto a distância de qualquer possibilidade.
Existem, por certo, retiros para afastar-te dos riscos e túnicas para sacralizar-te em ideais que se oponham a tudo o que podes ser, inda sim, jamais hei de conter teu ímpeto último de viver.
Ah, que eu me faças carne em seu deleite, e que
todos os julgamentos e arrependimentos se exorcizem na água benta que de ti escorre.
- Letícia Sales.
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