Vai

Naquele canto tem um não sei quê de familiar, o fogo derrete ao queimar as lenhas o desalento dos novos dias.

Lá naquele rio tem um correr vagaroso que traz calmaria ao senti-lo no corpo.

Observei a água batendo nas pedras e passando entre as gretas como um caminho cheio de vontade de ir e de continuar indo.

Sonhei com um ato falho que deixou escapar o medo do erro feroz, busquei amparo na parede velha mas o rio continuava passando por debaixo da ponte, só eu não me atrevia a passar por ela.

Os corajosos ousariam tal façanha, aqueles que brincam de desencontros, que ousam ir lá, que não tem medo das palavras e nem dos abismos de destreza e poesia.

Não queria saber daquele dia, não suportava mais a realidade, os destroços da pandemia, as páginas nas redes sociais de um luto incessante, as lágrimas que pareciam ter ganhado vida própria e se estampavam na cara e escorriam até a boca. Saí andando tentando respirar qualquer coisa de vida, como se os meus olhos fossem uma espécie de lente e pudessem filtrar e capturar algum resquício de sensibilidade, pois sentia que as palavras haviam sumido de mim e não era sem dor perdê-las, embora elas muitas vezes se expressassem através de um traço cheio de dor.

Mudei de rua, olhei para as árvores, olhei para os raios de sol que se esgueiravam por cima de um telhado qualquer, vi uma ponte de corrimão amarelo, ao atravessá-la tive medo de perder algo que para mim é importante, de que caísse no rio e que eu nunca mais pudesse resgatá-lo. Me remeteu a um sonho, o sol brilhou mais forte aparecendo entre as folhas de uma árvore logo a frente, as plantinhas se misturavam em um mesmo ramo, havia algumas vermelhas, outras amarelas de tamanhos diversificados. Na calçada havia crianças fazendo um tapete de roupas velhas e coloridas.

O sonho, a ponte enferrujada, as roupas que remetiam a velhas memórias, segurei com mais força a pasta cheia de papéis que eu tinha em meus braços, a apertei para garantir que não caísse mas ela continuava pesando, trazendo consigo letras carregadas de vazios. As casas continuavam passando, placas em salões de beleza anunciavam promessas de mudança e felicidade garantida. Quis tampar os meus olhos mas já era tarde demais, senti vontade de correr mas ri de mim mesma ao me dar conta de que seria inútil.

Um senhor lavava o seu carro ao som de músicas antigas em um rádio que há muito eu não via, logo a frente se fez silêncio, a rua ficou deserta e calma, respirei com um pouco de alívio, ainda estou tentando acostumar com a paz. Pensei nas roupas velhas, elas não serviriam para vestir, as crianças deram outra utilidade a elas, a ponte já não dava tanto medo, a escuridão foi sendo clareada pelos raios de sol que passavam entre as folhas de forma suave e rítmica, quase pude ouvir o som da brisa.

E se eu pudesse parar de escutar? Pensei ao fim de um quarteirão, disse a mim mesma que a minha escuta é que me salva. Na calçada do outro lado da rua um casal de idosos tomavam sol, ela estava maquiada e nos cumprimentamos pese a separação da rua. As frases do sonho vieram imediatamente: Vai senhora! Vai! Eu não preciso que você me salve e nem preciso salvá-la, atravesse a ponte.