O livro furado
Eu venho lá de Xambrê
De Icaraíma ou Guaporema
E quero contar pra você
A minha história em poema.
Nasci numa casa de barro
Rebocada com argila
Misturada com capim
Como as outras lá da vila...
O chão prensado e batido
As janelas de angico
E os batentes de angelim
Ganhei da madrinha Jura
Umas dez fraldas de pano
Um talco de alfazema
Pra curar as assadura
E um cordaozinho de Cristo
Pra aliviar os desengano
Éramos em seis lá em casa
O pai e a mãe lá no canto
O mano tico na sala
Maquita e Topia juntos
Embaixo do andor do santo
Me chamaram de João Datena
Sete dias depois de nascido
Mas meu pai que era carpinteiro
Olhando o meu comprimento
Logo me apelidou de trena
E assim fiquei conhecido
Cresci guaipeca e guacho
Marcado os pés de esfolado
C'os dedos finos e roxos
Nariz torto e sapecado
E ferida pra todo lado.
Eu aprendi a (não) ser gente
Em parte com o tio Chico
Irmão do primo do pai
Uma história diferente
Que se der tempo, explico.
Tio Chico pra mim era mito
Vivia sem preocupação
Conhecido em todo o distrito
Como o Chico Valentão
De altura, dois metros e pouco
Vivia arrumando enguiço
Cheio de marcas no corpo
Era o rei do reboliço
Meu pai cismo c'o problema
Me botou logo em serviço
E em sua companhia
Aprendi cedo o ofício
Firmando a alcunha de Trena.
Tio Chico foi levado
Prá um tempo na estufilha
Voltou de lá bem mudado
Mais magro e sem rebeldia
Aí eu cresci bastante
As minhas mãos engrossaram
Virei Datena, o gigante!
Ou o Trena de Elefante.
Passei a botar o terror
Em toda a cercania
Virei Trena o malfeitor
Bandido sem serventia
Meu pai de tanto desgosto
Palavras não me dizia
Só abaixava o rosto
E o cenho triste franzia
Perdi também meus amigos
E o mano Tico e a Topia.
Acumulando inimigos
Por todo canto que eu ía
Mas um dia meu tio Chico
Me chamou para um lado
Meu sobrinho eu te explico
Porque estou tão mudado
É que um dia fui rendido
Por um jovem Galileu
E deixei de ser bandido
Um novo Chico nasceu
Meu tio me deu um livro
De capa preta e pequeno
E disse: o Deus que sirvo
É Jesus Cristo, o nazareno
Saí um tanto atordoado
Mas voltei pra minha toada
E naquela mesma noite
Fui pego numa emboscada
Me deram muitos tiros
Mas só um pegou de jeito
Acertando o livrinho preto
E mal me esfolando o peito
Nessa hora desacordei
E tive um sonho interessante
Um jovem vestido de rei
Disse: Olá trena de elefante.
Eu tambem sou construtor
Aceite o meu perdão
E leve a minha salvação
Por todo lugar que for
E Cristo mudou minha vida
E apagou o meu passado
E hoje, Se alguém dúvida
Eu mostro o livro furado.