RECEBI O CORONAVÍRUS COMO UMA SENTENÇA DE MORTE




Perdi a contagem das horas no badalar do meu relógio antigo na parede.
Raras saídas para cuidar da horta, depois das chuvas quase morta de sede.
Motor de sucção, mergulhável, lançado nas águas paradas do último braço do rio Jaguaribe, que se aquieta no mar, tão logo fique livre o seu caminho.
Mesmo assim, faço o aguamento, reconfortando as plantas com carinho.
Protejo-me com óculos, máscara, luvas, botas e uma desconfortante roupa que motoqueiro só veste durante o inverno. 
Nesse meu novo terno de segurança, nada moderno,
incidem fortemente raios do Sol, cintilantes e cada vez mais escaldantes.
Meu corpo ali guardado, já desidratado quase completamente.
Desmaiei.  Por quanto tempo desacordado, não sei ! ? . . . 
Mesmo sem que ninguém me visse e sem parede para que as horas ouvisse, ressuscitei.
Embora de dia, vista ainda em escurecimento, senti-me como que ao relento.
Corpo cai sobre algumas plantas a quem dera sobrevida naquele momento.
A queda matou-as, como se fosse a tiros, com a rapidez de uma metralhadora suprida de vírus.
Reergui-me devagar.
Corpo cambaleante a me arrastar, querendo chegar a casa, mais adiante.
A febre veio logo depois do banho. Corpo dolorido.  Respirar estranho.
Emergência hospitalar.  Exames em profusão, inclusive tumografia do pulmão.
Três horas de soro com dipirona nas artérias.
A coisa vai ficando mais séria.
Pulmão afetado. Medicamento controlado. 
Alta para aguardar resultado.
Três dias depois, renovação da tumografia:
no pulmão, nova atrofia.
No quinto dia, teste para detecção da pandêmica infecção.
No oitavo dia, a certeza de que o vírus Covid em meu pulmão já reside.
Um dia daqueles em que um jardineiro cai de costas sobre nossas costas.
Ramas e caules quebrados, me sentei no primeiro banco encontrado.
Meu mundo caíu sobre mim. 
Vi-me um lixo atirado numa cloaca sem fim.
Sem que a alma obedeça, como pode um condenado levantar a cabeça?!...
Relento de verdade.
Voltei pro meu mundo começando a sentir saudade.
Podia estar fazendo minha última caminhada. Passadas desalinhadas.
Meu novo espaço restrito a um quarto da minha clausura de antes.
Maior penitência, até franciscana, doravante.
Comecei a ver de perto, e decerto, que o amor não é abstrato.
A família o concretiza, de coração, de direito e de fato:
- "Seus amigos não podem lhe visitar, mas fale pra eles como você está".
- "Só sei dizer que estou na linha de tiro de uma metralhadora a disparar".
- "Enquanto houver um bom especialista que lhe assista, seja otimista".
Tomo o celular que me aguardava pra dizer a todos que já me recuperava.
Pela contagem dos dias, não acreditaram e "muita saúde" me desejaram.
E eu, que me julgava só no mundo dos condenados, de repente sou reanimado por toda a gente com quem havia conversado, a me confortar
e dizer que eu estava preso, sim, mas minha liberdade não havia acabado;
que seria para mim muito importante não me sentir tão insignificante;
que, através da prece, eu haverei de descobrir que
"diante do impossível, o possível cresce"; 
que tudo isso vai passar e que eu iria suportar e superar...
Encarei o somatório dessas interações como a mais bendita das orações.
Não sou diabético, não sou cardíaco, não sou hipertenso,
mas sou vulnerável por conta da faixa etária a que pertenço.
Acredito que ainda venço.
Agradeço, pois, aos que me dotaram de ânimo, coragem e paciência, despertando-me e fortalecendo a minha fé nas amizades fraternas,
no amor de Deus e no vasto e confiável saber da ciência.
Para todos, cá do meu pequeno espaço,
um forte a>bra<ç>o.
 
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 05/09/2020
Reeditado em 06/09/2020
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