a cápsula
Sofro um sol submerso em mim
Sufoco o mar aterrado em mim
Um assombro me treme
Um desassossego diante de tudo o que pulsa e o que falta.
Realidade custa a engolir
Realidade entala
Encalha cadáveres do tempo
Entulha definitividades.
O que foi, o que não foi.
O que podia ser, o que eu podia ter sido.
O que se foi:
meu desejo.
Minha vontade tem perdido pra ele.
A lucidez ajuda mas atrapalha.
Porque não é tão lúcida assim.
Aí empaca.
Eu empaquei.
Estou emperrado
Numa cápsula que se abriu.
Algo que sempre esteve ali, direitinho, enquistado…
Algo que eu via como se não visse.
Como se não fosse.
E que agora, sem cápsula, se espalhou por mim todo.
Escancarou-se em realidade.
E quer que eu faça algo.
Que eu não vou fazer.
Às vezes até queria muito. Mas não vou.
Então fujo. Já fingi muito.
Embriago-me. Sedo-me.
Corro da realidade.
Que nunca pareceu ser embora fosse tanto.
Que até hoje me confunde como se não fosse.
Que eu na verdade nem sei se é, o que é.
E que mesmo sendo só em mim parece que já tomou tudo.
Parece já estar em tudo, em todos.
No mundo, escrachada.
E acho que está mesmo.
Como uma presença de sempre que só a mim surpreende.
Só a mim ainda assusta.
Tudo bem que eu não ajudo:
Sou estranho, diferente.
Não tenho o que todos têm. Tenho umas coisas que ninguém tem.
Não vivi só o que todos viveram:
Tudo do avesso.
E, com a idade, a gente pensa que passam as diferenças.
As deficiências.
As faltas de recurso, de repertório.
A gente pensa que fica igual.
Mas não fica.
Os buracos só não aparecem sempre e tanto porque estão lá atrás no tempo.
E já é tarde demais pra suprir eu nem sei o que.
Não dá pra fazer o que seria o normal de ontem.
E vêm a preguiça, o sofá.
O ansiolítico e a cerveja.
O suspiro sem açúcar. A stevia,
E a maldita terapia que bagunça tudo.
Que remexe e diz que ilusão não serve. Só a realidade.
Parece que me veem mas não me contam.
E se alguém me vê eu não vejo.
E quem me conta que quer não importa.
Quem conta que queira não quer:
Uma confusão.
De modo que está tudo bagunçado.
Então eu arrumo a cama e o sofá.
Passo flotador em tudo.
Aspiro o pó.
É o que eu posso. Passo.
E até ao meditar eu choro.
Na verdade, só ao meditar.