Do crepúsculo à aurora
Foi num crepúsculo de agosto, 1978
Ainda lembro-me bem
O quarto tremia e gritava
Eu, menina, me encolhia e chorava.
Papai estava bêbado novamente
Mamãe implorava para ele parar
Ele liberava seu ódio ardente e pungente
E eu, tão pequena, ela não podia salvar.
Acordei com o travesseiro molhado
O dia nascia com o cantar dos passáros
Mamãe estava na cozinha, à mesa, sentada
Olhos, pernas e braços cor de jabuticaba.
Papai dormia, entorpecido pelo álcool
Eu abraçava mamãe, que era pura expressão vazia
Beijava cada rude marca em seu rosto, fino corte e traço
Enquanto “eu te amo” a ela eu proferia.
Eu e mamãe então agora rezávamos antes de dormir:
“Nossa Senhora nos proteja de todo o mal, amém!”
Sempre que sentíamos que o crepúsculo estava por vir
Era o alento de nossas almas, eu me lembro bem.
É agosto de 2008; sorrio para os meus filhos com ternura
Enquanto o jantar esfria e eu espero meu amado
Horas passam e o relógio me tortura
Ele chega tarde, outra vez, mal-humorado.
As crianças no quarto dormem
Eu sinto o cheiro do álcool
Tento conversar com ele novamente
Nada feito, ignorada fui de fato.
Cansada estou de tal ancestral maldição
Na qual parece que fui, no ventre, enlaçada
Ser mulher, mãe e humana; libertadora prisão
Que como a minha mãe, me dilacerava.
Decidi então quebrar as correntes do destino
Que desde 1978, o cair da noite parecia trazer
A verdadeira liberdade agora seria meu hino
Não esperaria para daquela dor enfim livre ser.
Fiz então minha última prece a Nossa Senhora:
“Encerra essa minha dor, minha mãe, amém!”
E ao raiar da mais perfeita aurora
Saí de casa com os meus filhos, sem olhar para mais ninguém.