COMO QUEM ASSA TORTAS

O cego não vê o que escreve,

só sente a pulsação da neve

das geleiras que derrete sem olhar,

toca com sua alma quente o vasto mar...

O que vê presta atenção na grafia,

repara no andar das palavras sobre o papel,

pensa que poetar é aula de caligrafia,

que pode, ursamente, roubar-lhe o mel...

O triste revela o que lhe vai dentro,

uma lágrima pendurada como móbile acrílico,

um pão amanhecido para o seu sustento,

uma dor suportável no seu osso ilíaco...

O alegre salta com os adjetivos

repugnantes e imensos obstáculos,

colhe flores com versos sugestivos,

seus poemas tem dourados tentáculos...

O poeta nem escreve e nem desenha,

nem alinha e nem entorta;

desce do vago sua mente toda prenha,

tece poesias como quem assa tortas...