QUE IMPORTA ?
Talvez não sejamos mais
que memórias de momentos
que travestimos de palavras
no afã de um dia os recordar.
Pode até resultar,
mas serão apenas isso,
palavras evocando instantes...
Às vezes, por um instante apenas, conseguimos
que brilhe aquela pequena luz
que nem sabíamos desejar tanto.
No altar desse intento
sacrificamos medos e ânsias
evocando merecimentos que são reais.
Sentimos a sede das pedras à beira dos caminhos,
silentes, atentas à calcinação lenta
que irá transformá-las em pó.
Por isso trucidamos valores, conveniências,
ultrapassamos quaisquer pudores,
e deixamos aflorar à superficie
partes de nós que mal conhecemos,
surpreendentes, quiçá assustadoras,
repletas, às vezes, de pequenos toques
insuspeitados, condimentados,
de pequenas perversidades e vinganças.
Depois, todas essas coisas
que fomos juntando sem ver,
que fizemos convergir e resultar num momento perfeito,
produzem o instante mágico, único e singelo
em que sentimos
que tudo é como queríamos que fosse.
E então o brilho surge,
uma frágil luzinha de felicidade que nos envolve
como um pequeno globo dourado que nos protege
do tempo dos outros, de compromissos e razões.
Dentro dele acontecemos, realizados e felizes,
desligados de tudo, alheios a toda uma imensidão
que não entendemos nem queremos entender.
Mas a vida é um rodopio, o depois impõe-se ao agora,
o detalhe cobra o seu preço e suga-nos, e leva-nos...
e o instante, aquele instante precioso de luz,
satura-se, cumpre-se em si mesmo,
e aquele globo de luz dourada, prenhe de sonhos
transformados em memórias eternas,
afasta-se de nós levando-nos dentro,
e com ele tudo o que fomos vai se afastando,
dando a vez a outros instantes
do que também somos.
Depois há a memória
do nosso debate interior,
dos significados atribuídos e explicações tentadas,
dos ensaios construídos em todo um mundo de palavras
que não terão importância se esquecidas.
É esse o destino último das palavras,
serem esquecidas.
Aos instantes únicos do que fomos,
vogando quem sabe por onde
num globo de luz dourada,
irrepetíveis e fantásticos,
não podemos esquecê-los:
-não são palavras, somos nós!
(Que importa
se conseguiriamos fazer tudo outra vez ? )