PRINCESAS EM SÃO PAULO

Hoje noite de gala no teatro Municipal.

Informa o cartaz

estreia nova atração do corpo de baile:

a fábula da Bela Adormecida,

Imagino a dança,

em uma cena apenas

o príncipe entra,

descobre a princesa dormente,

- sangue europeu imobilizado entre heras -

e cede o beijo de amor na face da mórbida.

Retiro-me do Municipal,

desço as escadarias e reparo

homens sanduíches dançam com placas

e anunciam Abreugrafias,

mistérios do corpo na radiografia a revelar-se.

O antigo homem sanduíche bem servia à população.

Inspiro-me e percebo.

Alguém está enclausurado

na praça Ramos de Azevedo.

Dorme por aqui

e na mesma condição da Bela princesa,

alguém dessa multidão

sempre fixa na praça

- camelôs, crentes, mendigos, desempregados .

Gente que parece se eternizar,

marcar o asfalto,

devastar a terra

em volta do castelo que o teatro representa

prostrarem-se no chão

como quem se aplica a um pasto pobre.

Mas o que é isso?

Essa dança que surge agora e vejo.

O que são aqueles braços lançados na esquina?

Imagens da chapa de raio X enfim revelada,

delírios surgidos da agudização de um tumor?

Não! São índios, índios ali também,

que saem de motocicletas,

rodopiam nos espelhos, nas vitrines,

e brincam

ao som de um tamboril.

Índios em cocares a florescer,

em miçangas a girar suspensas,

enquanto brilha o meio-fio das ruas.

Porém, a clausura da turba real da praça

não percebe a dança.

As bocas entregues a monotonia do dia,

passantes em romaria,

não dão conta do bailado.

Vejo perto da antiga loja Mappim

um quilombo e outros departamentos,

vejo negros escravos a inventarem estrelas,

golpes, piruetas e giros de luta africana

atravessam os faróis da rua Xavier de Toledo

e completam-se no fundo do Vale do Anhangabaú.

De súbito quero gritar,

percebo em mim a concretude de altar,

de pedra fundamental

que me faz calar,

porque todos os negros, todos os índios

são príncipes da cidade aberta para a noite

e a praça Ramos de Azevedo

solta um cheiro de jasmim,

o mesmo de uma praça de cidadezinha,

com o seu chafariz de anjo

e coqueiros tombados pela municipalidade.

O teatro abre uma porta.

Lembro-me do ósculo do príncipe

no rosto tenro da Bela Adormecida

e ocorre que os índios e os negros

beijarão agora as princesas.

Os índios me olham e se aproximam,

olham e já me intimam:

“Levante o véu, por favor”!

DO LIVRO:"A CIDADE POSSÍVEL"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 19/07/2018
Reeditado em 07/10/2024
Código do texto: T6394519
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