DE PAPEL PASSADO

Tô muito desencantado demais

É homem comendo homem tirando um pedaço

Arrastando a carcaça do morto pelo asfalto

A miséria rindo e a bondade desencarnando

E o homem rindo na cara do homem

Estapeando cuspindo na face cheia de sol

É tristeza demais pro meu peito

É dor demais que dói aqui dentro

É homem roubando homem

E nem é pro sustento

Dói demais aqui dentro...

Arrasto eu minha carcaça

Entre planetas distantes

Amarrado a um barbante esticado

Ao pé de jabuticaba amarrado

E voo cego pela campina celeste

Mas levo comigo o restolho da peste

Sou homem não sou?

Nem de orgulho falo

De chofre me calo

Nem de pensar em medalhas posso

Sou um homem de carne e osso

Uma pipa de sonhos espalhados

E o menino atiça minha voada

E voo entre erguidas estradas

Mas não me esqueço da minha humanidade

De ser feito de pau e pedra e vontade

Dentro de mim um passarinho

De acolá voar como se procurasse um ninho

Descansar nas mãos de uma estrela que me aceite

Não como troféu da morte nem enfeite

Sou só um homem apavorado com os demais

Salvo o respeito de pai e mãe

Enganado pelas palavras bonitas

Amordaçadas entre os dentes

É de vida que falo

Da vida que me perde

Enquanto nem um pouco me acho

Desculpe o desafogo de pronto

É que ando meio tonto

Que nem o poeta do desassossego

É eu às vezes tenho medo

De que me ache caído no parapeito

Pronto pra saltar pro convívio das almas

Nem adianta nem que pede calma

O que aprendi do riso perdi dentro do choro

Nem foi por falta de um querer extenso

Nem por falta de decoro

Só que fui me rasgando nos arames

Estendidos entre a perda e o respeito

Fui me ferindo mas ainda assim fui indo

E ouvia a música dos anjos

Que recolhiam o brilho que a pele deixava

E assim fui a mergulhar nas águas

Do rio da vida

E cá estou estupefato e saudoso

Fui ramo de uma árvore que pendia

Fui por semanas e anos o filho da casa

Depois já de casca grossa

Saltei pra dentro da correnteza

E nadei feito um peixe

E me lavei das incertezas

Que o coração busca para aprender

E eis-me aqui a estender

Meu diário de papel passado

Escrito e amarrotado

Nestes versos de garranchos

Ainda assim ancho

Pelo que guardo de restos e fiapos de amor...